terça-feira, 22 de janeiro de 2013

O verdadeiro medo de existir...

 
Quando em Setembro de 2004 o filósofo José Gil escrevia as últimas linhas de um livrinho que muito vendeu sob o título "Portugal, Hoje. O Medo de Existir", ainda a procissão estava no adro. Eram ainda queixumes vagos e de barriga cheia, mais de índole filosófica, sobre um "medo de existir" genérico e difuso, por parte dos portugueses. Tratava-se de um tentame de análise da mentalidade tuga, ao longo dos tempos, sobretudo desde os tempos do Estado Novo, culminando no período em que o livro foi escrito, o breve "reinado" de Santana Lopes, que exageradamente o autor empolou muito mais do que a importância que lhe era devida. De permeio o período do que chamamos "o Grande Regabofe", que principia no "Enriqueci!" cavaquista (a expressão é de José Gil). Este interlúdio de aparente enriquecimento sem sustentação, relacionado com a última pataqueira - a dos dinheiros comunitários- gerou uma perplexidade a par de um certo deslumbramento, pelo que não se percebe muito bem onde andava então o medo. No capítulo intitulado  "De que é que se tem medo?", as respostasm não são bem claras. Parece que radica num medo atávico, ao Poder, um ingénuo "medo de não saber e de ser desmascarado", um "medo de ter medo", "medo de parecer ter medo, de parecer fraco, incapaz, ignorante, medíocre" (p. 80). Em última instância, era o velho medo de "falar", de "dizer" - a falta de liberdade de expressão, como se explana no capítulo sobre "O trauma português e o clima actual [2004]": "Mas tratar-se-á realmente de terror, ou mesmo de micro-terror, o que se passa na realidade actual da sociedade portuguesa?" - para depois glosar um caso que hoje já ninguém lembra, de umas certas pressões políticas sobre um canal privado de televisão por causa de umas diatribes do comentarista Marcelo Rebelo de Sousa, o que o levaram a demitir-se do cargo. Depois disso já houve as pressões de Sócrates sobre jornalistas, de Relvas idem, aspas, aspas... - sem que isso tirasse, de facto, o sono aos portugueses.
 
Vale a pena reler o livro, sobretudo para se perceber a trajectória que a Tugalândia tomou, até ao Medo a sério, o Terror a sério, em que vivemos. Este é bem menos prosaico e teórico. É real. É o medo de se perder o emprego, de se morrer à fome. É o medo de se ser assaltado, roubado e agredido. É o medo do idoso poder ser despejado do Lar que a reforma já não dá para pagar e que os filhos também não podem (ou não querem) pagar. É o medo de não se ter dinheiro para acabar o curso. É o medo de perder a casa e poder ter de ir de domir para a rua, sob uns cartões. É o medo que o desespero possa levar à loucura e ao suicídio.
 
Vale ainda a pena reler o livro, por alguns diagnósticos, ou melhor, constatações, que estão na raiz do problema, como por exemplo este parágrafo da pág. 72:
"A entrada de Portugal na União Europeia - de dentro para fora - processa-se, pois, através de mil ambiguidades. No meio da grande perturbação actual [2004] que a destruição do país arcaico provoca, agarramo-nos a automatismos afectivos, à tentação da corrupção (esperteza) por velhos hábitos de impunidade de classe, à inércia, ao compadrio (vestígios degenerados da antiga democracia afectiva), enfim não já ao familiarismo, que explodiu como meio envolvente, mas à família desfeita ainda pertinente como ideal imaginário que se remenda todos os dias com a ajuda de psiquiatras, psicólogos, psicanalistas" [isto era naquela altura, pois hoje já não há dinheiro para estes luxos de idas a psi's].
 
- Em suma, o que o autor não diz, mas nós intuímos, a diferença dramática desta Crise relativamente às crises do passado é que perdemos a rectaguarda que era a Aldeia, a real e a metafórica: da aldeia vinham as batatas, a hortaliça, o azeite, o queijinho e o salpicão, quando havia dificuldades na urbe. Só que agora os velhotes morreram ou estão no Lar de Terceira Idade, entrevados, e essa rectaguarda acabou. Como acabou a rectaguarda desse apoio afectivo, a Família.  E, perante o choque, desaprendida a agricultura e esquecidos os caminhos da Aldeia, estamos sós, órfãos e indefesos, perante uma besta-fera avassaladora que a cada momento nos pode devorar e a outros já devorou. Afinal, concluímos, eram de papel os sonhos e as promessas da mítica Europa e da aldeia global, perdemo-nos no virtual, deixámos a terra, perdemos o chão e ficámos sem nada.
Será ainda possível reaprender os caminhos da Aldeia real, a que tinha cheiros e aromas (do fumo da lareira, do estrume, das estevas e das urzes)? - E será que, depois, as troikas, os FMI's e Bróxelas, nos permitem plantar uma couve ou criar uma pita e um reco sem nos espremerem com impostos e com ASAE's??
 
Ti Zé da Aldeia

1 comentário:

  1. Excelente artigo! Os sonhos eram mesmo de papel e o medo é maior do que nunca...

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