Concorde-se ou não, goste-se ou não, às vezes esta Helena tem alguma razão. O principal defeito é o seu pendorzinho neoliberal, aliás na boa linha do pasquim digital "Observador", onde esta prosa foi editada em 16.02.2020:
Os portugueses “raizosparta” e os aristozeros
Helena Matos - 16 fev 2020
Os portugueses “raizosparta” são a desilusão da sua extraordinária classe
política, esses aristozeros sempre empenhados em políticas pioneiras. Primeiro
para a nossa vida. Agora para a nossa morte.
Os portugueses “raizosparta” nunca percebem nada.
Os portugueses “raizosparta” acreditavam que os deputados eram eleitos para
que a sua vida fosse mais digna não para que os deputados, enfastiados da
discussão em torno das condições de vida, se empenhassem com fúria e zelo na
definição das condições da morte. Digna, dizem eles.
Os portugueses “raizosparta” são a desilusão da sua extraordinária classe
política, esses aristozeros sempre empenhados em políticas pioneiras e
superiores, em mais um plano, em mais um avanço… Quando, como de costume, o FMI
é chamado pelos aristozeros, só encontra os portugueses “raizosparta” para
pagar a conta.
Os portugueses “raizosparta” descobriram que são livres de pensar o que
quiserem desde que pensem aquilo que os aristozeros definem como pensamento
possível.
Os portugueses “raizosparta” quando ouvem os aristozeros a defender o “zero
desperdício” só se lembram dos Espírito Santo a brincar
aos pobrezinhos na Comporta ou, para usar a
terminologia da moda, “refúgio hippie-chique” onde se vive “num estado mais puro”: uns e outros sentem-se em
harmonia com o universo, brincando com as dificuldades dos portugueses
“raizosparta”.
Os portugueses “raizosparta” acreditavam que viviam num país que tinha uma
História e não um relatório de culpas.
Os portugueses “raizosparta” insistem em viver em sítios onde as leis
superiormente inteligentes aprovadas pelos aristozeros produzem o efeito
contrário ao anunciado e dado como inquestionável pelos aristozeros: a
legislação que ia proteger os animais acabou com
matilhas de cães assilvestrados a matarem ovelhas e a atacarem agricultores. Culpa dos portugueses “raizosparta” que insistem em ter rebanhos, essa
forma de exploração dos animais pelo heteropatriarcado!
Os portugueses “raizosparta” nunca fazem o suficiente, nunca pagam impostos
suficientes e nunca se esforçam o suficiente de modo a cumprirem o admirável
mundo novo que os aristozeros lá das suas “ZERES” sonham impor. Uma ZER não é apenas uma Zona de Emissões Reduzidas, é sim a cidadela dos
aristozeros: o local onde não há espaço para as questões irritantes dos portugueses
“raizosparta” como os assaltos ou a degradação cívica, intelectual e moral que
se vive nas escolas públicas. Apenas gente bonita achando que alimenta o mundo
e o salva do impacto ambiental da agricultura industrializada porque
cultiva ciboulettes em vasos ditos orgânicos na varanda.
Os portugueses “raizosparta” não têm uma mente aberta perante as causas que
a cada momento os aristozeros lhe apresentam. Não é por má vontade, acrescento
eu, mas sim porque é impossível acompanhar o ritmo das causas avançadas pelos
aristozeros: por exemplo, como consegue um português “raizosparta” acompanhar
as lutas contra o racismo que invariavelmente acabam com os anti-racistas de
ontem a serem acusados de racismo pelos anti-racistas de hoje? (Enquanto
escrevo vou seguindo a extraordinária polémica com o racismo do anti-racista
Gilberto Gil que afinal agora é racista porque tem uma neta branca. Sigam os
links que amanhã o racismo já é outro!) Outros
fossem os tempos e dir-se-ia que o frenesim de causas dos aristozeros é uma
pescadinha de rabo-na-boca mas logo aqui se armava uma confusão
gastronómico-moral de consequências imprevisíveis, para os portugueses
“raizosparta”, claro.
Os portugueses “raizosparta” acham, ou melhor achavam, que a cada novo
problema correspondia uma nova solução. Oh estupidez de antologia! No tempo dos
aristozeros a solução é a privação: o iogurte não pode ter gordura, o leite não
tem lactose, o pão é sem glúten, os doces são expurgados do açúcar e o futuro
deve ser sem. Por exemplo, sem carros. Se um estúpido português “raizosparta”
lembra que andar de bicicleta no mês de Abril nas Avenidas Novas em Lisboa –
local por excelência dos aristozeros – não é a mesma coisa que vir, no mês de
Julho, do Bairro dos Cágados, do Casal Chapim ou de São Marcos para Lisboa é
óbvio ao iluminado raciocínio dos aristozeros que só um um português
“raizosparta” acaba a viver em tais paragens.
Os portugueses “raizosparta” contavam anedotas de alentejanos, de louras,
de pretos, de brancos… enfim, anedotas sobre si mesmos. Agora só podem rir
daquilo que os aristozeros autorizam. E só devem ver filmes de realizadores
aprovados a cada momento pela facção dominante dos aristozeros. Ler livros com
mensagem de autores empenhados. E apenas lerem notícias devidamente
certificadas pelos aristozeros.
Os portugueses “raizosparta”, porque são “raizosparta” e ainda por cima
portugueses, gostavam de coisas “com”: cozido com carne e políticos com ideias.
Mas os aristozeros tomaram a peito levá-los a achar natural que o zero é o
futuro. Estamos quase lá: o SNS não tem medicamentos, as escolas não têm
professores, as urgências não têm médicos, os transportes públicos não têm
carruagens… mas a quem é que isso importa? Apenas aos portugueses
“raizosparta”, uma gentinha que neste ano de 2020 vive e trabalha em sítios que
nenhum aristozero verdadeiramente aristozero frequenta.
Os portugueses “raizosparta”, aqueles que sustentam isto tudo, que mantêm o
país a funcionar, acreditaram que se fizessem mais um pouco, cumprissem mais
aquele regulamento, obedecessem a mais aquele procedimento, seriam deixados em
paz. Não foram. Do nascimento à morte têm os aristozeros a dizer-lhes o que
devem fazer, como devem amar, comer, trabalhar, viver, morrer…
Mas os aristozeros andam inquietos. Depois de se terem zangado com o povo
os aristozeros
começam a irritar-se com as urnas de voto. Já não se pode confiar nos portugueses, “raizosparta”.
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