quarta-feira, 18 de outubro de 2017

A morte antecipada da aldeia (real)...

Foto de Adriano Miranda/Público 

Já rios de tinta correram sobre o tema dos incêndios, e, como tal, tudo o que mais se possa acrescentar é chover no molhado. Mas, das várias coisas que lemos, e porque este blogue tem por título o trocadilho entre o "aqui d'el rei" e o "aqui d'aldeia", em que se subentende o "quem nos acode?", se bem que atiremos para a dita "aldeia global", é sempre a "aldeia real" que nos serve de norte, ainda que muitas vezes nesse conceito envolvamos a Tugalândia, país imaginário habitado pelos Tugas.

E, comovendo-nos como Marcelo sobre a tragédia, a pergunta que mais nos perturbou foi feita por alguém sofrido, algures perto de Vouzela, reproduzida numa reportagem da jornalista Natália Faria, de que se fez eco a tribuna neoliberal que dá por nome de "Observador", e que foi esta:  “Depois disto, o que é que nos segura cá?”

Com a devida vénia, transcrevemos o resto:

«Em aldeias há muito ameaçadas pelo despovoamento galopante, os mortos confirmados estavam todos ao pé da porta de Maria de Lurdes, no lugar de Vila Nova. “Sabíamos que as pessoas estavam lá, mas não imagina o que isto foi, com fogo por todo o lado. Ninguém conseguiu lá ir. Às tantas, dei por mim a pensar uma coisa que até me custou: ‘Já devem estar mortos.’ E mortos estavam, coitadinhos.” Quando via as notícias de Pedrógão, Maria de Lurdes, que tem nos vizinhos a família que, solteira e sem filhos, nunca teve, costumava benzer-se: “Nós aqui estamos no céu.” Afinal, não. “É um inferno como os outros. Depois disto, o que é que nos segura cá?”»

Sim, é isso. O que é que ainda nos segura cá? Remam contra a maré, últimos moicanos resistentes, cercados e avassalados pela "civilização" global, num tempo e lugar onde se tornou contraproducente produzir o quer que seja, pois que a concorrência da agricultura industrializada de porcarias feitas à pressão, desde batatas transgénicas aos pitos de aviário cheios de nitrofuranos e hormonas que decerto têm amaricado as sociedades urbanóides, e, por fim, isto!!

E agora esperem só pelo que vem por aí... Quando estes últimos resistentes tiverem desistido, a vegetar num lar qualquer, os filhos e netos, perdidos algures na cidade ou na estranja, vão em breve receber o fatídico telefonema dos agentes dos oligopólios que vão começar a comprar a terra queimada por tuta e meia. Segue-se o emparcelamento, virão potentes máquinas que vão escalavrar todos os solos milenares, e, seguindo projectos bem delineados em gabinetes de silvicultores altamente especializados e aconselhados por peritos em incêndios florestais, começarão sistematicamente o plantio da nova floresta neoliberal, a mata que não arde, altamente produtiva, com espécies de crescimento rápido, para pasta de papel e mobiliário do Ikea, tudo controlado por computador a partir da Suécia, ou da China, ou de outro ponto qualquer da aldeia global... - Claro que terão por cá os seus agentes locais, como aquele sr. ministro que se queixava, há muitos anos, de estar a perder dinheiro no governo (era um alto quadro da portucel), mas que de lá o não deixaram sair enquanto não produziu, durante mais de 10 anos, uma série de legislação para acobertar a eucaliptação da Tugalândia.... Ou o outro das negociatas dos chaparros, que decerto se perfila para ser ministro de agricultura e florestas num futuro governo pós-geringonça... para além da sua querida líder, que igualmente favoreceu a eucaliptação na sua passagem também pelo ministério da agricultura... Por isso, as suas moções de censura são lágrimas de crocodilos ávidos de voltar aos postos de controlo das centrais de distribuição de apoios a esses grandes oligopólios que os patrocinam e de que são agentes e testas de ferro.

Sim, a morte da aldeia real é também isto: a morte de um velho mundo moribundo patente nos olhos do homem da fotografia captada pelo repórter urbano. Espécie mais em vias de extinção que o desaparecido lince da Malcata. Com ele morre um passado milenar, neolítico, de gente com valor e valores agarrada ao seu rincão sagrado. Vem um novo mundo de criaturas sem alma e sem rosto, dominando extensos feudos decerto guardados por guardas armados, talvez netos destes homens, que se irão tornar servos deste miserável sistema que suspeito por detrás desta política de terra queimada. Sim, essa nova floresta capitalista não vai arder, não. Vigiada permanentemente por satélite e por drones e patrulhada por guardas privados, ninguém ouse pôr um pé nela. E, nesse dia, os pirómanos receberão o seu emprego, ou na patrulha de vigilância, ou nas equipas de abate ou serração.

Preparem-se. Vem aí a nova floresta neoliberal, asséptica,  a mata que não arde, altamente produtiva. O pinhal "nacional" desde D. Dinis, já era, tal como o pinhal do ti António, do ti Manel, ou do Ti Zé da aldeia real... Acabou. É preciso "modernizar a nossa floresta", vai ser o mote. E o papalvo come e aplaude.


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