Aqui fica: http://24.sapo.pt/atualidade/artigos/pedro-feytor-pinto-marcelo-rebelo-de-sousa-e-uma-criatura-de-marcello-caetano
PEDRO FEYTOR PINTO:
"MARCELO REBELO DE SOUSA É UMA CRIATURA DE MARCELLO CAETANO"
Foi director de informação de Marcello Caetano, trabalhou lado a
lado com a censura e dirigiu o "Primeiro de Janeiro", jornal
financiado pelo CDS. Talvez por isso saiba como ninguém que "a liberdade
implica muito mais deveres do que direitos". A conversa com Pedro Feytor
Pinto, como ele próprio, percorreu o mundo. Falámos de Salazar, de Marcello
Caetano e de Marcelo Rebelo de Sousa. Da falta de valores e de liderança, da
corrupção que aflige Portugal e quase todos os países e dos envelopes castanhos
onde antigamente se recebiam os salários. Do 25 de Abril, de Fátima e do Papa
Francisco. Pedro Feytor Pinto viveu em Marrocos, na Argentina, na Suíça, no
Benelux e em Espanha. De todas as sociedades que conhece, diz que "os
portugueses são muito especiais". E explica porquê. As suas histórias
sucedem-se e é difícil não nos embrenharmos nelas.
Como director de Informação e como director do "Primeiro de
Janeiro" lidou com muitos jornalistas. Como vê hoje o panorama da
informação?
Há um problema que para mim é apaixonante, o da comunicação.
Hoje, mais do que nunca, tem de haver um sentido ético extraordinário,
nomeadamente naqueles que controlam a informação ou que a transmitem. Veja, por
exemplo, Julian Assange, da Wikileaks, que se põe ao serviço de Donald Trump. Tudo
isto é descontrolado. A liberdade é fundamental, mas implica muito mais deveres
do que direitos. Irritam-me os jornalistas que têm preconceitos ideológicos.
A LIBERDADE É FUNDAMENTAL, MAS IMPLICA MUITO MAIS DEVERES DO QUE
DIREITOS. IRRITAM-ME OS JORNALISTAS QUE TÊM PRECONCEITOS IDEOLÓGICOS.
Quando foi director de Informação de Marcello Caetano não era já
assim?
Sim, mas não desta forma. Havia uma frase que se dizia:
"Veio no ‘Diário de Notícias’? Então é verdade." Se vinha num jornal, era verdade.
Era impensável o jornalismo ser um contrapoder, como alguém afirmou há dias. E
o jornalismo não é um contrapoder, isso é um erro tremendo. O jornalismo é um poder
extraordinário, um quarto poder, mas para informar. E as regras básicas e
fundamentais do "quem", "quando", "onde",
"como" e "porquê" continuam válidas, mais do que nunca. A
tecnologia veio tornar tudo isto ainda mais rápido, mais imediato. E o resto
também. Outro dia fui ao banco para fazer umas transferências e a empregada
tinha mudado. E perguntou-me: "Porque vem aqui ao balcão se pode fazer o
que quer no multibanco e evita pagar uma comissão?" Respondi que não sabia
como fazer e ela foi ensinar-me. No final disse-lhe: "Já reparou
que qualquer dia a senhora não é precisa?" A mim já não me resta muito tempo,
mas para si, para os seus filhos, para os seus netos isto é terrível. Onde é
que os vamos deixar? Aconteceu o incidente em Westminster e minutos depois
estávamos a ver tudo, um sem-número de pessoas tinha filmado, fotografado,
gravado os acontecimentos; gente da Coreia, dos Estados Unidos, de Espanha.
Parece que nem havia ingleses a passar na ponte de Westminster.
É tudo negativo?
Há aspectos que salvaguardam isto tudo, como a atitude do
deputado [Tobias Ellwood] que veio socorrer um polícia ferido, correndo riscos.
Não sabia o que estava a acontecer mas nem pensou nisso, o irmão já tinha sido
vítima de um atentado. Há uma contradição tão grande que torna muito difícil as
pessoas mais velhas adaptarem-se.
É difícil só para os mais velhos?
Há dias ia para Lisboa e a meio da ponte o carro pimba, pifou.
Chamei o reboque e veio um rapaz de 40 anos, impecável, que fez o seu trabalho
e me levou a casa — tinha-se estragado a caixa de velocidades. Fomos a
conversar e disse-me que era de Almada, casado, com dois filhos, um rapaz e uma
rapariga, de 18 e 14 anos. Perguntei se estavam a estudar. "Ai, nem me
fale nisso, é uma desgraça. Comecei a trabalhar aos 14 anos e sempre sonhei ter
uma filha médica. Mas eles só fazem asneiras, só querem dinheiro e não consigo
fazer nada deles", respondeu. E depois acrescentou: "Sabe,
antigamente parece que éramos mais pobres mas havia mais valores." E esta
coisa dos valores, para mim, é importantíssima. E tem sido, aliás, matéria das
minhas cogitações: será que podíamos ter feito diferente, podíamos ter feito
melhor? O que impressiona hoje é a falta de expressão do valor na vida
quotidiana — não digo que não exista qualidade intrínseca, porque não conheço
as pessoas todas e seria injusto. Repare no fenómeno da corrupção, é uma coisa
atroz. Parece que a única coisa que conta é o dinheiro. Aqui, em Espanha, em
França... E depois falta liderança, deixou de existir.
Antes do 25 de Abril não havia corrupção? Quando esteve no
governo não havia corrupção?
O que eu vou dizer vai parecer horrível... Há dias retomei um
discurso de Salazar em que ele diz: "Devo à Providência a graça de ser
pobre." E explica a vantagem de ser pobre, não dever nada a ninguém. Ele
acaba numa campa rasa em Santa Comba Dão, onde apenas se lê AOS
[iniciais de António Oliveira Salazar]. É possível que houvesse corrupção, mas
penso que o que havia talvez eram compadrios. E sobretudo as dimensões eram
completamente diferentes. Hoje é tudo aos milhões; vem um José Guilherme e dá
de presente 14 milhões, vem um [Hélder] Bataglia e diz que mandou entregar 18
milhões... Nem sei quantos zeros tem 18 milhões. É este tipo de coisas que
considero dramáticas. Lembre-se que mesmo depois do 25 de Abril os ministros
recebiam em envelopes, as pessoas punham o dinheiro em envelopes que eram
metidos nas caixas do correio.
(...) O DR. SALAZAR TINHA UMA GRANDE HABILIDADE, OUVIA MUITOS
GRUPOS, O MAÇÓNICO, O CATÓLICO, O MARCELISTA, O DA OPOSIÇÃO DEMOCRÁTICA, O
PARTIDO COMUNISTA — QUE É EXEMPLAR, ESTAVA MUITO MAIS INTEGRADO E METIDO EM
TODA A PARTE DO QUE PENSÁVAMOS
Manter um povo pobre e ignorante é a solução?
É muito mau. Mas ele [Salazar] era fruto de uma época. A
Primeira República foi feita por homens notavelmente inteligentes, mas de um
sectarismo que deu 46 governos em 16 anos [1910 a 1926], com presidentes
mortos. Nem estavam na orla do poder e sucediam-se. O que é que falhava ali? E
é uma pena ter falhado. A seguir ao 25 de Abril muita gente tinha crescido,
sabíamos que aquilo tinha de acabar. Um regime que se baseia numa pessoa,
quando essa pessoa desaparece desaba. O regime não acabou no 25 de Abril, o regime acabou em Setembro de
1968, quando o Dr. Salazar caiu da cadeira. Porque o Dr. Salazar tinha
uma grande habilidade, ouvia muitos grupos, o maçónico, o católico, o marcelista,
o da oposição democrática, o Partido Comunista — que é exemplar, estava muito
mais integrado e metido em toda a parte do que pensávamos. Salazar era um
manobrador de grupos. Quando desaparece, sobe ao poder um grupo, o dos
marcelistas. E os outros não aceitam, acreditam que também eles tinham a
possibilidade e o direito ao poder.
Disse-me uma vez que Marcello era muito mais às direitas do que
Salazar...
O Dr. Marcello Caetano era um professor e era um jurista. E era
incapaz — foi incapaz — de assumir a revolução, por exemplo. Lembro-me da
revolta dos estudantes, em 1962, em que ele deixa a universidade e recebe os
estudantes. Eu já estava ao lado dele e ele soprava: "Pffff,
pffff..." E oiço-o perguntar: "O que é que eu lhes vou dizer?!"
Quando aquilo era inevitável. Podia ter sido feito de outra forma, eu
sugeri-lhe que demitisse o almirante Américo Thomas. E ele respondeu: "Nunca
poderei cometer um erro arbitrário." Porque era um jurista, um
administrativista, um institucionalista. E tinha um afilhado — não é afilhado,
mas deu-lhe o nome — que nem o conhece, para quem parece que nunca existiu.
MARCELO NUNO SEMPRE FOI MANIPULADOR, MUITO INTELIGENTE, MUITO CULTO.
UM CRIADOR DE FACTOS POLÍTICOS. O GRANDE OBJECTIVO DELE É DIVERTIR-SE.
Está a falar de Marcelo Rebelo de Sousa?
Há dias, numa reunião com jornalistas, Marcelo Rebelo de Sousa
afirmou que começou a ser jornalista em 1975. Quando na realidade tinha uma
coluna no "Expresso" que era temida por toda a gente, escrita com um
pseudónimo, intitulada Veja. E escrevia também n"O Diabo", a
contradizer o que tinha dito no "Expresso". Marcelo Nuno sempre foi
manipulador, muito inteligente, muito culto. Um criador de factos políticos. O
grande objectivo dele é divertir-se. E diverte-se. Mas para quem tem memória
histórica é profundamente irritante. Ele jantava todos os fins-de-semana em
casa do professor Marcello Caetano, ajudava a escrever as "Conversas em Família".
Depois vinha e dizia tudo ao contrário. E o professor Marcello Caetano gostava
tanto dele — porque se sentia responsável por ele. O pai do Marcelo Nuno quis
que o professor Marcello Caetano fosse padrinho do filho. Mas Marcello não
aceitou porque o padrinho substitui o pai caso este desapareça e ele era muito
mais velho. Mas levou a senhora D. Maria das Neves no carro ao casamento.
"Ai, o Marcelo Nuno, o que ele escreve... Pode falar com ele?",
pedia-me. Mas ele, Marcello, nunca o chamava lá. E encontravam-se em casa. Mas
depois dizia-me: "Peça ao Balsemão que cá venha..." E lá ia o
Balsemão.
O que diria hoje Marcello sobre Marcelo Nuno?
Diria, como já disse, que ele [Marcello] não era um democrata.
Admiro a inteligência de Marcelo, diverte-me. E o que eu o ajudei por causa da
coluna no "Expresso". Ainda não estive com ele [desde a eleição], mas
quando o encontrar hei-de dizer-lhe: está muito envelhecido para quem só tem 40
anos. Porque parece que nasceu a 25 de Abril de 74, que não existia antes. É um
produto do regime. O Pedro [irmão] é muito mais honesto. Até o António [irmão],
sendo de esquerda.
A minha pergunta era o que diria hoje Marcello Caetano sobre
Marcelo Nuno Rebelo de Sousa...
Para já divertia-se. Tinha por ele e pela inteligência
dele uma admiração extraordinária. E continuaria a ter uma admiração
extraordinária. É a história do crocodilo e do passarinho. E ele, Marcelo Nuno,
tem expressões e ideias e coisas que são do Marcello Caetano. Marcelo Rebelo de
Sousa é uma criatura de Marcello Caetano. Há coisas tão absurdas... Numa
conferência na Sociedade de Belas Artes, Zita Seabra falava sobre a sua
experiência no tempo do Partido Comunista e contou que o seu controlador era
Pedro Ramos de Almeida, que conheci muito bem. E diz a Ana Maria Caetano, que
estava sentada ao meu lado: "Que graça, o Pedro Ramos de Almeida era o
melhor amigo do meu irmão Zé Maria e estava sempre lá em casa." Está a
ver? Um controlador é um homem firme do partido, do PC, e estava sempre em casa
do professor Marcello Caetano, era amigo do filho mais velho. Se isto não é
absurdo...
Marcello Caetano gostava de uma boa discussão?
O professor Marcello gostava muito da controvérsia intelectual
e, se um bom argumento fosse dado, esse bom argumento era aceite. Era
extraordinária, aquela casa, todos debatiam com toda a liberdade e todos tinham
opiniões diferentes. Aceitava toda a gente, mas tinha alunos dilectos. Freitas
do Amaral até copiava a letra de Marcello Caetano. E quando Santos e Castro,
que era presidente da câmara municipal, fez a compra — a municipalização — da
Carris de Ferro, que era dos ingleses, Marcello pediu ao Freitas do Amaral um
parecer, que ele fez numa folhinha A4, muito bem feito, impecável. E depois
apresentou a conta: 100 contos, que naquela altura era imenso dinheiro. E o Dr.
Marcello disse ao Santos e Castro: "Pague lá que o rapaz vai-se casar e
está a arranjar a casa." Muitas coisas doeram a Marcello, mas tenho ideia
que quem lhe doeu mais foi Freitas do Amaral.
Qual era o grande defeito de Marcello Caetano?
Um dia em que o apanhei bem-disposto perguntei-lhe: "O
senhor presidente sabe qual é um dos direitos fundamentais do homem?"
"Qual é?" "O direito ao erro", respondi. "Mas olhe que
há posições onde se não pode errar", disse logo ele. E por isso, digo eu, fica-se
paralisado. E um primeiro-ministro — ele era presidente do Conselho de
Ministros — tem de decidir ao segundo, constantemente. E ele encontrava-se
responsável por uma situação, um país, onde era necessário tomar decisões
fundamentais, nomeadamente em relação à permanência em territórios enormes,
onde estavam dezenas de milhares de portugueses de todas as etnias.
Era dramático. Estou convencido que tinha assumido compromissos em 1968, para
aceitar o cargo, que o mantinham obrigado a nunca pôr em causa a permanência no
Ultramar. Porque ele próprio dizia que se mencionasse a palavra
"autodeterminação" deixaria de ser presidente do Conselho. Mas eu
acreditava que se isso acontecesse ele voltaria e com mais força.
Acreditava mesmo nisso?
Claro que sim. Tenho a sensação que, mesmo no Carmo, Marcello
chegou a pensar que aquilo estava feito para ele. Quando lhe digo para receber
os capitães, ele recebe os generais. Porque para ele a pirâmide hierárquica não
podia ser subvertida.
SE OLHAR PARA ESTE GOVERNO, É UMA ESPÉCIE DE VINGANÇA DO DR.
SALAZAR E DE GILBERTO FREYRE [HISTORIADOR, SOCIÓLOGO E ENSAÍSTA BRASILEIRO]; HÁ
UM LUSOTROPICALISMO, COM UM GOÊS A PRESIDIR AO GOVERNO, UMA MINISTRA [VAN
DUNEM] DAS MELHORES FAMÍLIAS DE ANGOLA, GENTE QUE PASSOU POR MACAU, GENTE COM
LIGAÇÕES A TIMOR...
Falou na inteligência de vários políticos, como Marcelo. É uma
qualidade usada para o melhor?
Nem sempre. Mais inteligente que Marcelo Nuno, mas mais
prudente, é Paulo Portas. Antes competiam e utilizavam o jornalismo como forma
de influenciar a opinião. As pessoas tinham medo do que viria na capa de
"O Independente", que foi uma experiência interessante. Mas pouco a
pouco foram-se afastando. Portugal continua sem fazer a análise de não ser o
país que tinha uma dimensão enorme para ser o país com menos de 93 mil
quilómetros quadrados. Se olhar para este governo, é uma espécie de vingança do
Dr. Salazar e de Gilberto Freyre [historiador, sociólogo e ensaísta
brasileiro]; há um lusotropicalismo, com um goês a presidir ao governo, uma ministra
[Van Dunem] das melhores famílias de Angola, gente que passou por Macau, gente
com ligações a Timor...
Quer dizer que não há coincidências? Que o actual governo é
assim por...
Por inevitabilidade. É a prova de que tínhamos razão. Só que
devíamos ter encontrado uma solução diferente. O erro que se cometeu foi o de
uma descolonização influenciada por umas Forças Armadas cansadas, que não
queriam combater mais. Quando, em 1971, andei dois meses por Angola e Moçambique falei com as tropas.
Em Dezembro desse ano trouxe ao Dr. Marcello Caetano uma mensagem: "Até quando e para quê?"
Era uma espécie de quadratura do círculo. As Forças Armadas que não estavam
politizadas, havia um pequeno grupo que estava politizado e que em certa
medida aproveitou o movimento, profundamente nacionalista,
influenciado por um acontecimento ocorrido em 1962, a guerra da Argélia. E que
começou a questionar-se "se foi em vão que deixámos o nosso sangue pelos
caminhos do deserto". Havia este conceito, tudo isto era muito difícil. Hoje
vemos que o mundo está a transformar-se pouco a pouco numa espécie de vendetta
cultural, vemos que a
solução que propúnhamos era uma solução positiva, a tal do multiculturalismo de
Gilberto Freyre, muito atacada pelos historiadores marxistas, que dominam a historiografia
portuguesa.
Viveu alguns anos num país muçulmano. Isso dá-lhe uma visão mais
ampla, em ambos os sentidos...
Cinco anos. Penso que são extraordinários e que há uma minoria
violenta e nós somos devedores ao mundo árabe, porque a cultura da Grécia e de
Roma não veio pelo Norte da Europa, pelos bárbaros, mas pelo Sul do
Mediterrâneo, pelos árabes. Foram eles que a trouxeram para Córdova e para
Granada, para os califados. Mas eles diziam sempre que havia duas coisas que
não nos perdoavam: as cruzadas e a colonização. Uma colonização que, em certa
medida, descobria um lado negativo do mundo. Quem fazia a escravatura eram os
árabes, que iam buscar autóctones ao interior e os vendiam. Nós ficávamos na
costa e levávamo-los porque precisávamos de mão-de-obra. A história está a ser
escrita em grande parte por pessoas que acham que a presença portuguesa foi
exclusivamente por objectivos económicos, quando não foi. Éramos menos de um
milhão. Há aqui factores complexos, que têm a ver até com o final dos
Templários.
"ENQUANTO OS ESPANHÓIS CONSTROEM CATEDRAIS PARA PEDIR
GRAÇAS, OS PORTUGUESES CONSTROEM CATEDRAIS PARA DAR GRAÇAS."
Somos um povo cheio de traumas?
Um grande escritor e historiador suíço, Gonzague de Reynold,
escreveu sobre Portugal a certa altura: "Enquanto os espanhóis constroem
catedrais para pedir graças, os portugueses constroem catedrais para dar
graças." Se reparar, é assim mesmo. Perdemos a batalha do Toro [1476] e a
partir desse momento temos de sair para ser diferentes. Fomos para o mar para
ser diferentes. Hoje preocupa-me imenso a história da Catalunha. Se a Catalunha
se torna independente, não
há razão nenhuma para que daqui a menos de vinte anos não haja uma República
Confederativa Ibérica, na qual está Portugal. E Portugal é mais pequeno
que a Andaluzia, que Castilla La Mancha, Castilla y León.
Isso é terrível? Porquê?
Porque eles são muito maiores do que nós. Um espanhol quando vem a Portugal nunca diz
que vai ao estrangeiro. No subconsciente colectivo, para eles ir ao
estrangeiro é passar para lá dos Pirenéus. Para cá é uma coisa diferente, mas
tão amorosa... Somos tão encantadores... Eles chamam guardinhas à Guarda
Republicana, a quem davam propinas, dinheiro, para não terem multas de
trânsito. É um sentimento entre carinho e desprezo. Diz-se que se não fosse a Catalunha não seríamos
independentes. Mas ao fim ao cabo a nossa independência, as nossas
fronteiras, são de 1143, com o Tratado de Zamora [acordo de paz assinado entre
D. Afonso Henriques e Afonso VII de Leão e Castela]. E aí tiro o chapéu a
Marcelo Rebelo de Sousa, que propôs — sei que foi ele — que o presidente da
Grécia fosse depor uma coroa de flores na Igreja de Santa Cruz de Coimbra, ao
rei D. Afonso Henriques, quando o normal é irem aos Jerónimos, ao túmulo de
Camões, e eventualmente de Vasco da Gama. Mas Marcelo, professor de Direito
Constitucional, senhor doutor honoris causa, propôs aos gregos
ir antes a Coimbra, onde está a universidade mais antiga, e à Igreja de Santa
Cruz, ao túmulo do primeiro rei. Há uma diferença, é a afirmação de que somos
diferentes há muito tempo. Porque quisemos ser diferentes.
Passámos do "orgulhosamente sós" para a CEE, agora
União Europeia. Orgulhosos?
Penso que uma das viragens fundamentais e um dos grandes
falhanços da União Europeia foi não considerar que o cimento da UE era um
conceito ético-religioso, que Adriano Moreira define muito bem: "A Europa começa onde aparece um
campanário e uma cruz." Isso é fundamental, independentemente de se
ser católico ou protestante. É o factor judaico-cristão. Quando se desfez, o
Império Austro-Húngaro chamava aos Balcãs "le ventre mou de l’Europe"
[a barriga flácida da Europa], estava no limite da ortodoxia católica romana ou
da ortadoxia do império do oriente. E os turcos tinham estado à porta de Viena.
Isso repete-se. Quando estudávamos História tínhamos uma visão de corte
transversal. Agora estuda-se num corte vertical, à americana. Os americanos são
óptimos a saber a cultura da batata no Minnesota no ano de 1833, mas não sabem
mais nada. A Europa é diferente.
Tive um professor, Wilhelm Röpke, um grande liberal, consultor
económico de [Konrad] Adenauer, que foi contra a constituição da Comunidade
Europeia do Carvão e do Aço, porque dizia que era como construir um grande
cartel. Mas Adenauer respondia que não, era a primeira vez depois da guerra que
os franceses pediam alguma coisa à Alemanha e era preciso
corresponder. Uma Europa onde, na altura, todos falavam alemão; Adenauer era
alemão, [Robert] Schuman era da Alsácia e Alcide de Gasperi era do Tirol.
Adenauer pede a Röpke que encontre um economista culturalmente extraordinário e
que fale francês como um francês. Acaba por ser Walter Hallstein o primeiro
presidente da Comissão. O aviso de Röpke em relação aos carteis é hoje uma
realidade. Pois é. Não aconteceu imediatamente porque houve homens que o
impediram. Conversei muito com o chefe de gabinete de Jacques Delors, Pascal
Lamy. Uma vez perguntou-me: "O que é que Portugal ganhou com a
entrada na CEE?" Eu respondi: "O que deve perguntar é o que é que a
CEE ganhou com a entrada de Portugal." Dou o exemplo da Suíça, onde vivi
seis anos; é-se Bernois, Genevois, Vaudois... Só fora da Suíça é que se é suíço.
Na Europa é a mesma coisa, só fora da Europa é que se é europeu,
porque dentro é-se francês, alemão, italiano. E quem levou esse conceito de
Europa fomos nós. Obviamente ganhámos umas coisas: a democracia e a economia
livre de mercado - de outra forma podíamos estar em risco. A União Europeia
precisava de um conceito de valor, não pode ser como a graçola desse senhor
holandês [Jeroen Dijsselbloem, presidente do Eurogrupo], que não devíamos levar
tão a sério. Por isso sou partidário de que devíamos ir mais longe, evoluir
para uma confederação europeia. Mas não creio que hoje seja possível, não vejo
nenhum líder com ideias, o único com ideias ainda é a senhora Merkel.
Como vê Martin Schulz, ex-presidente do Parlamento Europeu,
agora presidente do SPD e candidato a chanceler?
É perigoso. Martin Schulz é um demagogo. Demagogo e bastante
sectário, muito socializante. Eu sou um anarquista moderado, tão liberal que
acredito que quase não devia haver governos, as pessoas deviam ter formação
suficiente para, por si, saberem que ao atravessar a rua têm de passar num
sítio marcado no chão e que os automobilistas param. E é uma das manias que
tenho, agradeço sempre a quem pára para eu passar, os carros fazem um sinal. Se
todas as pessoas actuassem segundo o conceito de que a liberdade implica muito
mais deveres que direitos, seria uma vantagem notável. Mas de todas as
sociedades que vi Portugal e os portugueses são muito especiais.
O GRANDE
DEFEITO DOS PORTUGUESES, JÁ CAMÕES O DIZIA NA ÚLTIMA PALAVRA DE "OS
LUSÍADAS", É A INVEJA.
ESTAMOS SEMPRE A OLHAR PARA OS OUTROS, A VER O QUE FAZEM.
Em que sentido?
No sentido em que somos muito interclassistas — e não há mais
classista do que a Suíça. A democrática Suíça é mais classista do que ninguém,
mas toda a gente parte do princípio de que é assim. Admiro muito a Suíça,
porque é o compromisso impossível; para se entrar para o governo é preciso ser
do bom cantão, da boa língua, do bom partido, da boa religião e ainda ter um
mínimo de condições para o lugar, sobretudo não ter dado demasiado nas vistas.
E isto acontece naturalmente. O ser interclassista é novo. Tenho pena que se
tenha perdido o culto da cultura francesa em detrimento da cultura
anglo-saxónica. Antigamente todos falavam francês, agora todos falam inglês. E
ouvir a rainha de Espanha a falar inglês é confrangedor, horrível. Outra
questão intrínseca: nós amolgamo-nos, somos de uma universalidade
extraordinária. Há um programa na televisão que mostra portugueses a viver nos
sítios mais improváveis, completamente integrados. Tenho um sobrinho que vive
com a mulher e os filhos em Bali, já tinham estado em Taipé, os miúdos iam para
a escola chinesa. Outros estão na Florida. Hoje há portugueses por toda a
parte, porque este nosso espaço, os quase 93 mil quilómetros quadrados, não
permitem a nossa realização. O grande defeito dos portugueses, já Camões o
dizia na última palavra de "Os Lusíadas", é a inveja. Estamos sempre a olhar para os outros, a ver o que fazem.
Lá fora conseguimos coisas que cá dentro parecem impossíveis.
Porquê?
O que depois contrasta. Já viu algo mais emocionante do que a
chegada da selecção portuguesa [Euro2016]? Ou Marcoussi às quatro da manhã, com
dezenas de milhares de portugueses que são maltratados — porque nunca nos
queixamos, mas os franceses tratam-nos mal, aquilo está lá atravessado.
Lembro-me sempre quando uma senhora me perguntou como falava tão bem francês.
Porque não era trabalhador da construção ou porteiro. Mas é que a cultura
anglo-saxónica não é pela Inglaterra, a Inglaterra é extraordinária, essa sim, tem
um sentido de paternalismo em relação a nós — por isso um grande pensador
liberal espanhol dizia que éramos uma mal disfarçada colónia da Grã-Bretanha —,
é por causa da América. A América acredita que deve impor o seu sistema a todos
os países. Só que não dá, veja a asneira monumental feita no Mediterrâneo, que
estamos a pagar. Tudo isto é resultado da Primavera Árabe e bastava que
tivessem lido "Os Sete Pilares da Sabedoria", do coronel
Lawrence, para perceberem o que está a acontecer hoje. Ou terem visto o filme
"Lawrence da Arábia". Aquilo é tudo tribal, aqueles países só vivem
com um sistema. Os americanos correram com o Mubarak e puseram lá o Al-Sisi,
que ainda é mais duro. E veja como tem funcionado em Marrocos. Um dia um
general disse-me: "Há três coisas que unem Marrocos: a língua, o rei e a
religião." Entre Rabat e Ousda, na fronteira com a Argélia, há 300 tribos
diferentes. Mas os americanos têm a mania. Logo no início desta conversa disse
que os portugueses ainda não fizeram uma reflexão.
Sobre o quê, exactamente?
Ainda não fizemos um exame de consciência. Temos tiques de
grandeza. Alguém na Casa Branca se preocupa que o senhor Dr. António Costa ou o
senhor Dr. Marcelo Rebelo de Sousa dêem um espirro? Mas estamos convencidos que
sim. Antigamente havia uma comissão que analisava a aplicação das convenções e
recomendações e acusaram-nos de não aplicar as convenções que tínhamos assinado
sobre discriminação racial e trabalho escravo. E eu tinha de defender o
contrário. Posso dizer-lhe uma coisa, não se ouvia uma mosca. E ia à Comissão
Económica para a Europa defender a barragem de Cahora Bassa, cuja construção
consideravam um crime contra a humanidade. O mesmo. Tudo era ouvido com
atenção. Mas tivemos um papel no mundo. É por isso que me custa muito que agora
o Papa só vá a Fátima, parece-me injusto. O padre António Vieira e o padre
Anchieta cristianizaram o Brasil. E Angola e Moçambique, a China, o Japão.
E VAI VER QUE O PAPA AINDA VAI FAZER UMA GRAÇA: PARAR O
HELICÓPTERO A CINCO QUILÓMETROS, EM VEZ DE PARAR NO CAMPO DE FUTEBOL, PARA
FAZER O PERCURSO A PÉ.
Também viveu em Buenos Aires. Conheceu o Papa Francisco?
Conheço muito bem este Papa. Nos cinco anos que lá estive ele
era arcebispo de Buenos Aires. E tínhamos o mesmo encadernador, de maneira que sabia
até o que ele comia [riso]. E assistia à festa nacional, Bergoglio a zurzir
Carlos Menem, então presidente da Argentina. Há 500 mil lusodescendentes na
Argentina, incluindo membros do governo. Fartei-me de comer sardinhas assadas e
já não podia ver bacalhau. Em todos os lugares põem capelas de Nossa Senhora de
Fátima e celebram o 13 de Maio. Nós, portugueses, fizemos muitas asneiras, mas
também fizemos muitas coisas boas. E a agenda do Papa é um
pouco limitada. Já imaginou o que seria Francisco, o primeiro Papa
jesuíta, a passar no Marquês de Pombal, que correu com eles? Ou se fosse a
Coimbra ver a estátua do Mata-Frades [Joaquim António de Aguiar]? E António
José de Almeida e Afonso Costa? E os colégios religiosos todos, a começar pelas
Caldinhas, em Santo Tirso? E os jesuítas não esquecem, podem perdoar, mas não
esquecem. E vai ver que o Papa ainda vai fazer uma graça: parar o helicóptero a
cinco quilómetros, em vez de parar no campo de futebol, para fazer o percurso a
pé. Mas ele avisou: não quero ver político nenhum, vou como peregrino.
Suponho que vai ser difícil evitar pelo menos um político...
Não vai, não. Embora eu pense que este nosso cardeal-patriarca
[Manuel Clemente] poderia procurar exercer mais influência. Fátima é tão
importante... E as histórias que se têm escrito sobre Fátima são do arco da
velha, dizerem que foi tudo inventado pelo bispo de Leiria... Já nem ponho o
problema de os pastorinhos terem ou não visto [as aparições], mas e a conversão
da Rússia, o fim da guerra, tudo isso? Centenas de milhares de milhões de
pessoas vão a Fátima constantemente. Somos um país profundamente católico mas
marcadamente anticlerical, não gostamos dos padres. Mas vi a secretária de
Estado do Turismo [Ana Mendes Godinho] dizer na televisão que o turismo
religioso era óptimo. A seguir fazemos as rotas dos judeus, as de Santiago de
Compostela, as de Fátima. E aqueles que vão a pé, que não têm um tostão? E
depois há coisas que são dificilmente explicáveis, como o atentado contra João
Paulo II. A bala desviou-se por milímetros. E Jorge Leitão, responsável pela
coroa de Nossa Senhora de Fátima, contou-me que dentro da coroa, ao centro,
existia um buraquinho que parecia que estava feito para pôr lá a bala, quando a
coroa é de 1942. Acredito que nada acontece por acaso. E a Irmã Lúcia gostava
muito do Dr. Salazar, que era um homem da Igreja, e escrevia-lhe. Já Marcello
Caetano não.
PENSO QUE CAVACO SE PRECIPITOU. ERA INSOFRÍVEL, PORQUE ALÉM DO
MAIS ERA MUITO TEIMOSO. E SABIA DE FINANÇAS, NÃO SABIA DE MAIS NADA. MAS
TAMBÉM SE É INJUSTO COM ELE E SENTIU-SE ATACADO... ELE ERA E É HONESTO.
A propósito de chefes de Estado, ultimamente têm sido publicadas
diversas biografias e memórias. Cavaco Silva devia ter publicado o livro?
Não devia. É a história de Pirandello, as pessoas vêem
as coisas de acordo com a maneira como olham para elas. E os olhares são
diferentes, cada um interpreta segundo a sua verdade. O que é a verdade? Penso
que Cavaco se precipitou. Era insofrível, porque além do mais era muito
teimoso. E sabia de finanças, não sabia de mais nada. Mas também se é injusto
com ele e sentiu-se atacado... Ele era e é honesto. Apesar de tudo o que se
diz, das histórias do BPN. Eu recebi o BPN em Marrocos, não me passou pela
cabeça que aqueles senhores andassem a fazer trafulhices, achei que deviam ser
extraordinários: chegam num avião privado, dizem que vão comprar isto e aquilo,
que vão fazer o maior hospital de Rabat... Está bem, que bom, dou o apoio que
puder. O banco parecia sério e veio o director dos hospitais, veio o director
dos hotéis e veio tudo. Eram recebidos por toda a gente porque eu os
apresentava, a minha função era ajudar a que o maior número de empresas
portuguesas se instalassem em Marrocos, nunca recebi um background que
levantasse suspeitas. Mas também assisti a lobbies, feitos por esses que andam
agora a ser discutidos e nos tribunais. Depois é que se vão juntando as peças
do puzzle. Mas há coisas que não percebo...
E EU SEI, POR EXEMPLO, QUEM VAI AO MELHOR SAPATEIRO DOS ESTADOS
UNIDOS, NA MADISON AVENUE, EM NOVA IORQUE, QUE É O ALAN ROBERTS: "AH,
TEMOS AQUI UM CLIENTE QUE NOS DÁ AS FORMAS E A QUEM DEPOIS ENVIAMOS OS
SAPATOS... UM SENHOR SÓCRATES..."
Por exemplo?
Por exemplo, aceito que um pobre roube, mas esta coisa de se
aceitarem milhões... Há pessoas para quem parece que nada é suficiente. Conheci
o Hélder Bataglia quando veio de Angola, com uma mãozinha atrás e outra à
frente, sem nada. Um dia fui a um congresso de pescas e, de repente, vejo uma
senhora italiana, esplendorosa, muito bonita. Era a mulher do Bataglia. Depois,
vamos ver, só um ignorante não percebe que um andar de 270 metros quadrados no
6éme arrondissement em Paris custa uma fortuna. E eu sei, por exemplo, quem vai
ao melhor sapateiro dos Estados Unidos, na Madison Avenue, em Nova Iorque, que
é o Alan Roberts: "Ah, temos aqui um cliente que nos dá as formas e a quem
depois enviamos os sapatos... Um senhor Sócrates..." Um par de sapatos do
Alan Roberts custa mais do que o vencimento do primeiro-ministro em
Portugal. A corrupção é inaudita. Volto a dizer, o Dr. Salazar recebia o
vencimento num envelopezinho castanho, como eu também recebi, e ainda
encontraram dinheiro em envelopezinhos castanhos na mesinha de cabeceira quando
ele morreu.
Afirmou que esta é a geração mais bem preparada e também que há
menos valores. Não é uma contradição?
Prepararam-nos apenas tecnicamente. E muitos dos valores que
lhes transmitiram foram valores marxistas, em questões fundamentais. Somos nós
e a nossa circunstância, como dizia Ortega y Gasset. Temos os melhores
médicos, mas os médicos do mundo não prescindem de um fim-de-semana e os
hospitais ficam sem médicos. Antigamente qualquer aldeia tinha um médico e um
farmacêutico, agora não há médicos nem farmacêuticos que queiram ir para as
aldeias. E isto acontece em todas as profissões. Há valores que vão acabar por
ser substituídos por soluções tecnológicas. O que é uma pena, porque o mais
importante na vida são as pessoas e a relação entre as pessoas. Não era ter um
salário no final do mês, era ter um galo ou uma galinha ou uma dúzia de ovos.
Tudo se fundava na confiança.
Hoje as relações de confiança acabam como o Novo Banco e os
lesados do BES.
Exactamente. É impressionante. Lembro-me do primeiro choque que
tive, estava na Argentina, quase no virar do século, e um jovem licenciado
estava seis meses num emprego e ao fim desse tempo arranjava outro melhor. Mas cada
trabalho era uma missão. Não havia médico nenhum que não estivesse uma hora com
o paciente, viam tudo. Agora fui duas vezes ao centro de saúde e, no total,
devo ter estado três minutos com o médico: "Levante a camisa, tussa, tome
um xarope." E fico de cabelos em pé quando ouço dizer que se adquirem
bactérias nos hospitais. Lisboa era a cidade branca do cineasta suíço Alain
Tanner. Agora é a cidade cor-de-rosa ou azul ou amarela porque pintam as casas
de todas as cores e feitios. Penso que falta substrato cultural. E vivemos numa
crise, mas no Verão passado não houve dia nenhum em que não houvesse um
festival, sempre cheios como ovos. Ainda bem, mas há qualquer coisa que não
está certa. E vão lá para fora, fartam-se de trabalhar, são os melhores do mundo
e têm êxito. É a tal falta de espaço de que falava há pouco, o português
precisa de espaço para se expandir, para não se sentir controlado e invejado. É
essa reformulação que o país tem de fazer, é fundamental as pessoas
saberem qual é a sua circunstância.
Antigamente é que era bom?
Às vezes pergunto-me se é por ser velho, mas o diabo não é mau
por ser velho, é por ser diabo. Não quero que pareça que estou a dizer que o
tempo antigo era melhor. Obviamente, era-se mais novo. Cometeram-se imensos
erros, mas nem tudo era mau e havia que encontrar outras fórmulas de as pessoas
poderem perceber qual o seu papel no mundo. O tecido empresarial português é
constituído por 85% de pequenas e médias empresas, que têm de trabalhar
fundamentalmente para o mercado externo, somos só 10 milhões. Agora está-se a
redescobrir o campo, o que é saudável. A Holanda é rica, fundamentalmente, por
três ou quatro grandes empresas: a Shell, a Unilever, a Philips e a Axo. O
resto é campo, são as tulipas. E é tudo feito por jovens. Antes tínhamos
mercados garantidos, agora temos de os conquistar. Temos a sorte do turismo,
mas as modas são efémeras. É preciso recuperar o património histórico mas sem
preconceitos. É como dizia o outro, é tão fácil ser governo e tão difícil
governar...
SABE, ISTO DE SE ESTAR PERTO DO PODER É HORRÍVEL; ESTÁ-SE MELHOR
INFORMADO, SABE-SE MAIS MAS NÃO SE TEM O PODER, A DECISÃO NÃO É NOSSA.
Tem arrependimentos, pensa nisso?
Já não vale a pena, já não mudo a história. Mas acordo muitas
vezes às quatro da manhã a pensar nisso. Marcello Caetano dizia sempre:
"Deixe lá, a história nos julgará". Porque eu lhe escrevi e disse que
muitas vezes me pergunto o que terei feito mal, o que poderia ter feito
diferente. "Não pense nisso, a história nos julgará". O pobre senhor,
que continua, depois de morto, emigrado no Brasil. Gostava muito de perguntar a
Marcelo Nuno se foi ao cemitério de São João Batista, no Rio de Janeiro, ao
túmulo do Dr. Marcello Caetano. Um homem que deu a vida inteira pelo país,
tanto na universidade como na vida política. Já no Brasil queixava-se que tinha
cinco doutorandos sem qualidade nenhuma, que aquilo era uma bagunça e que
jogava canasta com uma camisa azul com bolinhas brancas. Este senhor podia
estar feliz e contente, como dizem? Não acredito. E os Planos de Fomento eram
documentos notáveis, sem esquecer que Sines, o Alqueva e a auto-estrada do
Norte foram feitos, iniciados, no tempo de Marcello Caetano. Também foi ele que
preparou toda a questão do salário mínimo, os que vieram a seguir só
tiveram de aplicar. Sabe, isto de se estar perto do poder é horrível; está-se
melhor informado, sabe-se mais mas não se tem o poder, a decisão não é nossa.
Quando acorda de
madrugada em que pensa?
Penso mais na
descolonização. Porque o Dr. Marcello Caetano estava a preparar o Ministério
dos Negócios Estrangeiros para fazer a descolonização, era o projecto de uma
vida. O nosso problema é que tínhamos de fazer uma descolonização com êxito,
que nos permitisse salvaguardar a presença humana, a presença cultural e a
presença económica. E estávamos lá quase, mas aquelas forças de bloqueio... Já
viu o que era o presidente da República chegar aos sítios e passar por mim e
não me apertar a mão? Mas ele era esperto que nem um anho: estavam duas filas
frente a frente e ele apertava a mão a toda a gente de um lado e, antes de
chegar a mim, passava para o lado de lá. Era um país muito diferente...
Pergunto-me sempre se estava do lado errado... Mas não, suponho que não havia
isso. Repare, eu, no segundo posto da hierarquia do Estado, ganhava dois
contos. Sentia-se o dever de servir o país. Sobretudo havia o conceito de que
não devia haver exibicionismo e éramos respeitados. Agora felizmente que temos
o futebol.
AQUELA MARIANA MORTÁGUA PÕE-ME DOIDO, É UMA COISA DO ARCO DA
VELHA. E O SORRISO DA CATARINA MARTINS, ACABA SEMPRE A FRASE A MOSTRAR A
DENTADURA, É HABILIDOSA COM O POVO.
É a tal falta de líderes de que falava?
Aquela Mariana Mortágua põe-me doido, é uma coisa do arco da
velha. E o sorriso da Catarina Martins, acaba sempre a frase a mostrar a
dentadura, é habilidosa com o povo. Entre tudo, não se vê ninguém que
sobressaia. Depois temos o presidente da República a estender roupa, aos beijos
às velhinhas, às criancinhas... Acho muito bem mas, pelo amor de Deus, é o
presidente da República. O Bernardino Machado ia de eléctrico para Belém, mas
era naquele tempo. Apesar de tudo, até António Costa consegue ter outro
estatuto, mas também já está a mudar, já percebeu que o que está a dar são
beijinhos e palmadas nas costas. E depois fazem assim às pessoas [esfrega os
antebraços], não se conhecem de lado nenhum e parecem os melhores amigos.
Como imagina Portugal daqui a vinte anos?
Temo muito que seja a República Confederativa Ibérica. A saída da Catalunha,
depois do país Basco, depois da Galiza... Quando chegar à Galiza estamos nós
metidos na história, porque os galegos dizem sempre que estão mais perto de
Lisboa do que de Madrid. E eu gosto da Galiza, mas prefiro a Andaluzia, ao
menos esses são divertidos.
Em relação à ONU, acredita que António Guterres poderá fazer a
diferença no momento actual?
O mundo está louco e eu não queria estar na pele de António
Guterres, é preciso saber dar um murro na mesa. Além dos problemas de meio
ambiente — veja o que aconteceu no Peru com as cheias, o terramoto no Chile, em
Itália o Etna e o Stromboli a entrar em erupção... Isto faz lembrar o Apocalipse que São João descreve.
Mas há muito pouca gente com vontade de se pôr de acordo e isto só se resolve
pelo entendimento de todos os países. Como vamos resolver o problema dos
milhares de refugiados que todos os dias atravessam o Mediterrâneo e que agora
vêm da África subsaariana? Atravessam o Saara para chegar à Líbia, é um êxodo
bíblico.
De resto, acredito que Trump vai melhorar. Pode ser que as pessoas se
passem com isto, mas, e apesar de tudo, tenho uma admiração por Putin, que defende o seu país, sabe
quem é o seu país e tem um conceito perfeito sobre o papel que o país deve
jogar no mundo. Ainda que continue a agir como se fosse do KGB — e deve ter
sido. E aí Trump é capaz de ter uma linguagem que Putin percebe. Só que Trump
não sabia nada de política, do exercício político, e vir de Nova Iorque, do sector
imobiliário, para Washington, para o meio da política, deve ser como uma mosca
num copo de leite. Mas num mundo em que há riscos basta que haja um atentado
para ele ganhar força.
Sabe, todas as casas em Marrocos tinham um guarda, que vivia
numa casinha ao lado. Mobilei a casinha toda do meu guarda, que tinha começado
a aprender português. Gostava de poesia portuguesa e num Natal ofereci-lhe
"A Tragédia da Rua das Flores", de Eça de Queiroz. Um dia viu na
internet um anúncio de um curso de Verão de Português na Universidade do Porto
e, sem dizer nada, candidatou-se a uma bolsa. Mas precisava de um visto e lá
vieram umas senhoras do consulado pedir-me que ajudasse o pobre Hassan, com uma
carta onde garantia que ele ia e voltava. Chamei o Hassan e disse-lhe:
um juramento para si, como para mim, é uma coisa sagrada. Vai aqui fazer um
juramento em como vai regressar e eu faço um juramento que espero por si. E ele
lá foi. Nunca mais o vi. Depois fiquei a saber que durante as noites ia
retirando tudo de casa, móveis, televisão, cama, tudo. Ainda hoje, quando ouço
uma notícia de um atentado ou de um preso por terrorismo me pergunto: será o
Hassan? [risos] Oxalá não seja.
As
fotografias de Pedro Feytor Pinto foram gentilmente cedidas pelo Jornal I.
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