sábado, 11 de maio de 2013

"Estamos esmagados" - diz o Prof. Adriano Moreira


ESTAMOS ESMAGADOS – Entrevista a Adriano Moreira

 
"A culpa morre solteira" - expressão sua.

Usei-a no Parlamento. É uma prática muito verificável em Portugal,

designadamente na crise que estamos a atravessar. Você ainda não viu que

alguém assumisse a responsabilidade pelas circunstâncias a que chegámos.


Esse é um traço constante, observável em diferentes momentos históricos da

vida portuguesa. De onde é que acha que vem esta característica?

Em Portugal tudo fica no ar, e raramente há consequências e um sentimento de

justiça que o acompanha.

Acho que devia ter nascido mais cedo e ter feito essa pergunta ao Agostinho

da Silva. [riso] Era capaz de lhe dar uma resposta satisfatória. Há, em todo

o caso, uma circunstância de que Portugal é vítima neste momento.

Normalmente, quando examinamos a vida de um país, há três forças que é

necessário avaliar. Uma é a sociedade civil, que neste momento faz

manifestações completamente apartidárias, o que é preciso ver com cuidado.

São expressões que dizem respeito a sentimentos que unem a população, por

razões de queixa fundamentais.

 

Está a pensar na manifestação de 15 de Setembro de 2013?

Exactamente. Depois há outra força: o Governo. E finalmente a terceira

força: a conjuntura internacional que influencia qualquer país, e cada vez

mais face ao globalismo. Uma ordem internacional implica que pelo menos

estes três factores tenham uma harmonia de funcionamento.

Essa harmonia não existe. Com frequência, aconteceu em Portugal a desarmonia

entre o Governo e a população, a desarmonia do país com a conjuntura

internacional. Portugal sofreu nos últimos tempos uma evolução extremamente

alarmante. Na História portuguesa, o país precisou sempre de um apoio

externo.

Sempre?

O Afonso Henriques pediu apoio à Santa Sé. A Segunda Dinastia pediu a

aliança inglesa e pagou caríssimo por ela. No fim do império euro-mundista o

único apoio que restou foi a União Europeia. Esta evolução mostra que o país

(na ligação com o mundo) é muitas vezes exógeno. Quer dizer: sofre as

consequências de causas em que não participou. Um exemplo: a Guerra de

14/18. Portugal participou nas causas? Não. As consequências, quer em

Moçambique, quer em Angola, quer na Flandres [foram enormes].

Começou a ser evidente que o país tinha evoluído para um "estado exíguo".

(Escrevi um livro com esse título há anos, dizendo que a relação entre os

recursos do país e os objectivos do país é

deficitária.) Várias pessoas com responsabilidade na vida pública avisaram

que este declínio estava em marcha. Quando essa equação

(recursos-objectivos) chegou à situação de desastre em que nos encontramos,

o país ficou em regime de protectorado.

 

Um regime sobretudo imposto pela situação financeira?

Sim. Os países têm uma espécie de hierarquia internacional - é por isso que

o Conselho de Segurança tem as superpotências. Para terem essa hegemonia

precisam de ter um poder que abrange o poder militar, estratégico e

financeiro. Quando esses poderes começam a afastar-se, a hierarquia começa a

diminuir. Os Estados Unidos estão a ser atingidos por isso. Portugal

(últimas notícias sobre as restrições nas forças

armadas) mostra que nessa relação (poder militar-poder financeiro) a nossa

debilidade é extrema. É isso que justifica a situação de protectorado em que

o país se encontra. As outras debilidades evidentemente atingem o país de um

modo mais previsível.

 

Soluções?

Remédios? Em primeiro lugar é preciso restaurar um valor importante: o da

confiança. A confiança entre a sociedade civil, Estado e conjuntura

internacional está profundamente atingido. Parece-me que tem havido uma

certa dificuldade, da parte do Governo, em compreender que há uma diferença

entre a legitimidade eleitoral, que justifica a tomada de poder, e a

legitimidade do exercício [de poder], que começa a ser avaliada no dia

seguinte [à tomada de posse]. Esta legitimidade para a execução não é uma

coisa para entretenimento das estatísticas de popularidade.

 

Está a dizer que tem de haver uma correspondência com aquilo que foi o

programa eleitoral.

E com a autoridade que foi conferida. Não é só em Portugal que esse valor

está em crise. O novo-riquismo que orientou a gestão europeia, e que levou a

Europa a esta situação, já se traduziu no seguinte: a fronteira da pobreza,

que ainda no século passado os relatórios da ONU situavam a sul do Sahara,

ultrapassou o norte do Mediterrâneo.

Portugal está na área de pobreza. Como está a Espanha, a Grécia, a Itália; a

França já começa a dar sinais disso.

 

Os países mediterrânicos são os que mais têm sentido esse espectro de

pobreza, são os que estão mais vulneráveis à crise, Porquê?

A hierarquia de capacidades, não apenas financeiras, mas científicas,

técnicas, a eficácia de governo e de iniciativa económica - tudo isso faz

que sejam ressuscitadas fracturas europeias. Não é de hoje a opinião que a

senhora Merkel tem sobre o sul. Se bem me recordo, há um texto do Guizot

[primeiro-ministro francês em 1847] que quase emprega as mesmas palavras

para o dizer. O que considero errado é considerar que esta crise é uma crise

puramente europeia. Se a comunidade europeia deixar aprofundar as quebras de

solidariedade que já se verificam, a Europa arrisca-se a não ter voz no

mundo. A crise é ocidental. E o ocidente todo que está num período de

decadência.

 

Isso deve-se, sobretudo, à emergência da China, dos BRlC?

Há uns que perdem capacidades e outros que a adquirem. Não necessariamente

com culpas. A Alemanha, que foi responsável pelas duas guerras mundiais que

destruíram muitas das capacidades europeias, teve, entre outras coisas, a

benesse de estar dispensada de despesas militares durante anos. E todos

colaboraram, incluindo os povos do sul, na defesa do Muro para impedir que a

República Federal fosse atingida pela [força política] a que o Leste estava

submetido. Nos cemitérios da Normandia, as sepulturas são de soldados

americanos. Não são de soldados alemães. Portanto, estas solidariedades, a

Alemanha teve-as.

 

Como teve quando se tratou da reunificação das duas Alemanhas, após a queda

do Muro.

Exactamente. Mas se a nossa crise é uma crise global, quem é que já convocou

o Conselho Económico e Social das Nações Unidas? Ninguém.

 

Quem é que deveria tê-lo feito?

Qualquer membro interessado.

Na Europa existe uma subjugação à Alemanha? A orientação da chanceler

Merkel é grandemente responsável pelo destino actual da Europa?

Ela - [Alemanha] -, a responsabilidade, é evidente que a tem. O que é

discutível é que a percepção que tem da evolução da Europa coincida com o

projecto dos fundadores. Atribuo aos fundadores da União Europeia uma

espécie de [estatuto de] santidade. Esses homens enfrentaram a guerra, a

destruição dos seus países, transformaram o sofrimento em sabedoria, e

disseram: "Vamos criar condições para isto nunca mais acontecer".

Schuman e Adenauer, sobretudo esses tiveram esse espírito. Não podemos

esquecer Jean Monet. Nas memórias, escreve que, se fosse hoje (quando estava

a escrever), teria começado, não pelo comércio, mas pela cultura. Porque a

crise de valores era extraordinária. Essa crise é que afecta as

solidariedades, e faz que, mesmo num ponto de vista internacional, a

governação ande entregue a órgãos que nenhum tratado criou - caso do G-20 -

ou a órgãos que parecem transformar as Nações Unidas num templo de orações a

um deus desconhecido.

 

A ONU está destituída de poderes e de importância?

Acho que a ONU está numa crise enorme. Precisa de uma remodelação. A começar

pelo Conselho de Segurança que já não corresponde, de maneira nenhuma, às

condições em que vivemos. As potências, qualificadas de superpotências, com

direito de veto, também têm a sua crise - incluindo os Estados Unidos. Mas

para a Europa é importante saber porque é que a França e a Inglaterra têm

direito de veto. Que poder é que [estes países] têm em relação ao mundo? Uma

das reformas que seria útil fazer seria pôr no Conselho de Segurança países

que, pela sua dimensão, são efectivamente necessários lá, e regionalismos.

Era a Europa que devia estar no Conselho de Segurança e não a França e a

Inglaterra.

Há cerca de um ano assinalaram-se os 5O anos do Tratado Franco-Alemão.

É extraordinário pensar como este "longínquo" projecto europeu se esgotou.

Na sua génese, estava uma ideia de solidariedade e de desenvolvimento

harmonioso que promovesse o equilíbrio entre as diferentes partes da Europa.

 

Acha inevitável que se faça uma refundação de toda a Europa? Esse projecto

assinado há 50 anos pode ainda ser afinado e recuperado?

Na base de qualquer projecto destes tem de estar um princípio. O princípio

da unidade europeia é muito antigo. Continuo a ter admiração pelo conde

Coudenhove-Kalergi, que parecia ter nascido para o internacionalismo. Todos

os grandes líderes europeus depois da Guerra estiveram nos congressos que

promoveu. (Ainda hoje existe uma fundação Coudenhove-Kalergi a que pertenço;

já lá não vou). Esse homem falava na federação europeia. E claro que a

palavra "federação" tem muitos sentidos, e isso não significava que ele

tivesse o modelo final.

Significava que tinha de se caminhar, como sempre entenderam os projectistas

da paz (é preciso sempre falar do Kant). Tinha que haver uma gestão

solidária, comum, da Europa, que está mais ligada por valores do que por

etnias, pela língua, pela cultura, que são variadas mas que têm um tronco

comum. Não temos dúvidas quando dizemos que somos europeus.

 

Essa pertença é ainda herdeira dos valores da Revolução Francesa? É a

famosa trilogia liberdade, igualdade, fraternidade que nos guia e que define o

tronco comum?

Não é só isso. Esses valores são um produto da evolução do espírito europeu.

"Todas as pessoas nascem com igual direito à felicidade", mas os índios não,

os escravos não, os trabalhadores não, as mulheres não... Foi preciso uma

grande luta [para efectivar estas conquistas].

Mas sempre a partir do tal paradigma. Esse conjunto de valores é que dá

identidade à Europa.

A Europa que teve a ambição de europeizar o mundo... - daí o império

euro-mundista que morreu o ano passado.

Essa circunstância tem uma consequência importante: a redefinição (a ideia

de refundação é muito ambiciosa) desses valores. O principal deles é a

soberania. E o direito a certas prestações que o Estado deve fornecer ("le

droit aux prestations", como dizem os franceses) - o Estado Social. Há uma

coisa curiosa na vida [das nações] (na vida das pessoas também): mantêm a

convicção do poder quando já não o têm.

 

Ou seja, funcionando Portugal num regime de protectorado, não temos o

mesmo poder nem a mesma soberania.

Não, não temos. Nem temos o que está previsto no Tratado Europeu.

Fomos vítimas do facto de sermos um estado exógeno. Também fomos vítimas de

mau governo, [dito em tom irónico] Sem culpas, sem culpas... Mas queria

dizer-lhe alguma coisa de esperança.

 

E voltamos à palavra antiga que usou: remédios. Há remédios?

[riso] Acho que há. Em primeiro lugar, olhar para o país na situação actual

e ver quais são os factores da redefinição da soberania de que precisamos.

Não é só a segurança que diz respeito às forças armadas e à segurança

interna. Há um elemento da soberania que é fundamental: o ensino e a

investigação. Uma das razões da mudança de centros (entre os países

emergentes e os que estão a descer) é que talvez tenha sido esquecido que

não há fronteiras para a circulação do saber e do saber fazer. Hoje, a

Alemanha parece que tem um bom mercado para os seus excelentes automóveis na

China. Não me admira que daqui a algum tempo seja a Alemanha a comprar os

automóveis à China. Um país que quer manter-se na competição global precisa

de um ensino e de uma investigação que lhe permitam utilizar o saber e o

saber fazer.

 

Em Portugal, era preciso que se continuasse a investir na investigação

científica, na qual nos temos destacado nos últimos anos?

Sim. A minha vida tem sido quase toda na universidade. O que ouvi

recentemente foi um conselho, [um apelo à] emigração. Há cursos de tal

qualidade (sobretudo na área da Economia e da Gestão) que se orgulham que os

seus diplomados, mestres e doutores emigrem e sejam muito bem recebidos lá

fora. Eu não me sinto feliz que vão trabalhar por conta de outrem, para

outro país. Queria era que tivéssemos condições para que aqui ficassem, e

fizessem do país um país capaz de competir.

Esta vaga de emigração que agora temos. É de alta qualidade.

Nada tem que ver com a vaga dos anos 50 e 60, essencialmente constituída por

força braçal e iletrada.

É uma força altamente qualificada. Se os melhores se vão embora... As

contribuições de jovens cientistas, em especial da Universidade do Minho e

da Universidade de Aveiro, sim, ajudam o país a recuperar uma posição no

mundo concorrencial em que estamos.

 

E ajudam a recuperar confiança. Alento.

Sim. Por isso sempre sustentei que ensino e investigação é um problema de

soberania. As propinas são taxas do Direito Financeiro. Não são o preço do

serviço que o professor presta ao aluno. Diz respeito ao interesse do país

que isso se faça. Temos outras janelas de liberdade para o país. A meu ver,

há duas principais. Uma é a CPLP.

 

A língua portuguesa como património, como motor, como tesouro?

Não é só a língua E a maneira portuguesa de estar no mundo. É mais do que a

língua. Da língua, o que digo é que a língua não é nossa - ela também é

nossa. Mas os valores que a língua transporta, porque a língua não é neutra,

esses valores não são iguais em todos os países onde se fala português. A

maneira portuguesa de estar no mundo, o Brasil soma valores indígenas,

africanos, alemães, japoneses, italianos...

A CPLP é um caso único. A França que teve uma importância tão grande no

norte de África, e naquele bocadinho do Canadá, não tem uma CPLP.

A Espanha

também não. E [a constituição da CPLP ainda é mais significativa] depois de

uma guerra de tantos anos [com os países que a constituem]... O que

significa que o conflito era com a forma de governo, não era com o povo

português.

 

Angola, Brasil e Moçambique estão a crescer, mas todos têm grandes

assimetrias entre ricos e pobres.

É. Acho que a CPLP precisa de grande atenção. A universidade deu por

isso: há uma associação das universidades de língua portuguesa. A última vez

que reuniu foi em Bragança, 400 pessoas.

Outro problema: o mar. A terra que não se pisa e a água que não se navega

não são nossas. Lembro-me sempre da reunião de D. João I com os filhos.

 

Como foi essa reunião?

Tanto quanto a minha memória me diz, das leituras de há tantos anos,

juntaram-se para discutir o que é que haviam de fazer para se expandir.

Havia quem entendesse que a expansão devia ser para a Andaluzia. Os rapazes

[os infantes] disseram: "Não. Tivemos uma guerra com Castela que durou anos,

agora estamos em paz. Castela considera que a sua zona de expansão natural é

a Andaluzia. Se formos para aí, vamos ter guerra outra vez". Então para

onde? "Para o mar."

Discutiram. Os recursos, o saber, as armas, os navios, tudo. Definiram um

conceito estratégico nacional.

Portugal tem uma posição estratégica privilegiada, mas não um Conceito

estratégico nacional. Mesmo agora está a ser discutido um documento sobre

defesa e segurança Fui ouvido. A minha primeira pergunta foi: defesa e

segurança de quê? Falta o conceito estratégico.

Ser uma plataforma continental é outra janela de liberdade. Se nos for

reconhecida pelas Nações Unidas, será a maior plataforma continental do

mundo. O reconhecimento estava previsto acontecer em 2013. Agora já se fala

em 2015. Não gosto disto. Esta plataforma é uma riqueza incomensurável. Vi

uma notícia sobre a intenção da União Europeia de redefinir o mar europeu.

Lembrei-me de 1890. Nós também tínhamos a ideia de Angola à Contra-Costa e

depois veio o Ultimato [Inglês]. Se definem o mar europeu antes de definir

que a plataforma é nossa, provavelmente todos os países da União Europeia

vão considerar-se co-proprietários. Devíamos apressar isto.

 

E meios, e força, e dinheiro para apressar isto?

O financiamento é um problema, naturalmente. Aí precisa de uma esplêndida

diplomacia. A nossa é boa. E equivalente à do Vaticano!, com a diferença de

a do Vaticano ser ajudada pelo Espírito Santo, [riso]

 

Está a pensar especificamente no actual ministro dos Negócios Estrangeiros?

Também no nosso ministro, mas a nossa diplomacia é muitíssimo boa. E muitas

vezes trabalha sem instruções. É o amor à Pátria, é o que [é considerado] o

interesse nacional, e lá vão. Acho que isto faz parte do futuro de Portugal.

Usou a expressão "janela de liberdade", e não "janela de oportunidade", que

é uma expressão que agora se usa muito. Não é a mesma coisa.

Não, não é. As pessoas acham que, porque pertencemos à União Europeia, tudo

tem de ser feito de acordo com a UE. Eu digo: "Não, não. Há um espaço de

liberdade. A França: aquela gendarmerie que manda para África, para explicar

o que é a democracia, não tem nada a ver com a UE. Tem a sua liberdade".

Temos de ter a nossa. Temos de cumprir com os tratados da União, mas a União

não nos impede que tenhamos um espaço de liberdade. A CPLP é a nossa

liberdade. Por isso prefiro a palavra "liberdade". Essa liberdade já vem

ligada a uma espécie de posse. A oportunidade é outra coisa. E preciso [para

essa oportunidade] ainda um outro esforço.

 

Este Governo que temos vai para dois anos está desapontado? Têm sido crítico

nas intervenções públicas que tem feito. Esperava mais?

Devo dizer que desapontado estou com a Europa. Depois estou desapontado com

a solidariedade atlântica. (Os efeitos colaterais do abandono dos Açores são

enormes do ponto de vista económico para o

arquipélago.) Neste Governo, há uma coisa que me incomoda: o objectivo

fundamental é o Orçamento. Uso a expressão "ministro do Orçamento".

 

Ministro ou primeiro-ministro?

Ministro do Orçamento, e não ministro das Finanças ou primeiro-ministro. O

ministro mais importante é o do Orçamento.

 

Portugal não está refém do Orçamento, ou seja, do cumprimento do

memorando da Troika?

O estar preso pelas obrigações financeiras internacionais é evidente que

exige que essas obrigações sejam assumidas. É isso que restaura a confiança

e que restaura a igualdade internacional do país (e que elimina o

protectorado). Mas se fosse um caso isolado, a nossa debilidade seria maior.

Não é o caso. O caso é que a fronteira da pobreza atingiu a Europa, como

disse. A solidariedade do espaço, que é um princípio que está em vigor,

implica que a situação real dos países tenha de ser avaliada. Não é com

fórmulas aritméticas que se governam os países. E não é um favor que fazem.

É uma dedução do princípio da solidariedade. Já viu algum médico tratar

todos os doentes com o mesmo remédio? Nunca viu. O remédio não é igual para

todas as situações. A situação de cada país precisa concretamente de ser

avaliada. Portugal não está na mesma posição que está a Inglaterra ou a

França Os países com que nos comparam não são esses. Portugal quis

comparar-se com a Grécia, para dizer que não é a Grécia. Que é o bom aluno,

cumpridor.

Mas estão todos em pé de igualdade com a Alemanha e a França no que respeita

a direitos e obrigações dentro da UE. Se há o princípio de ajuda mútua na

UE, tão obrigada [a isso] está a Alemanha como estamos nós. Quando chegam as

dificuldades queremos ser tratados como os outros.

Voltemos à apreciação a este Governo. Falta-lhe conceito estratégico, dizia.

Falta conceito estratégico. E é evidente que a gestão neoliberal do Governo

está a destruir o Estado Social. O Estado Social, uma conquista do ocidente,

é uma convergência do socialismo democrático, da doutrina social da Igreja e

até do manifesto comunista de Karl Marx. (As palavras têm uma força

tremenda. Às vezes falo do poder da palavra contra a palavra do poder.) Na

Constituição portuguesa o Estado Social é uma principiologia. Não é uma

regra imediatamente imperativa. O que diz é: na medida da possibilidade. E

estranho que se transforme uma principiologia numa rejeição. Não se devem

rejeitar princípios, em especial princípios que levaram séculos a ser

desenvolvidos e a ser incorporados na cultura da população. Nesse aspecto,

tenho uma certa apreensão e falta de confiança no entendimento da real

situação portuguesa. E não posso considerar que o Orçamento seja o elemento

fundamental. Os que estão já numa situação de pobreza, juntos, têm força

suficiente para dar um murro na mesa [e exigir] que os princípios da UE

sejam respeitados.

 

Estamos na iminência de uma revolução em Portugal, justamente porque esses

que apontou, juntos, já são capazes de dar um murro na mesa?

Tenho admirado a maneira ordeira e não-partidária com que as reacções se têm

verificado. Mas penso que a população portuguesa atingiu o limite da pressão

fiscal. Quando vemos os suicídios, as mães que se atiram da janela com os

filhos para não os deixar cá, quando as coisas chegam a estes extremos,

lembro-me disto: a fome não é um dever constitucional. Sabido isto, a

inquietação aumenta dia-a-dia Não preciso de dizer mais palavras.

 

Isto que estamos a viver tem algum paralelo com alguma coisa que tenha

vivido nos seus 90 anos?

Não. É a situação mais deprimente que vivi na minha longa vida. As condições

de vida eram diferentes. E mais difícil [agora] perder [determinadas]

condições de vida As condições não eram as desejáveis, mas as pessoas não

sofriam tanto. Porque havia a... "vida habitual".

Embora a culpa morra solteira, a sociedade civil não é a que tem mais

responsabilidades. Estamos esmagados. Pagamos as dívidas que o novo-riquismo

do Estado desenvolveu (não tenho de fazer distinção entre partidos).Temos de

pagar as dívidas das câmaras, dos institutos que o Estado multiplicou, e o

que sobeja, e que não pode ser o último dos interesses, é a vida de cada

ser humano. A dignidade tem de ser igual. A Europa sabe isto.

 

É por cegueira que os políticos não aterram nisso que diz?

Vou dar-lhe um texto do Padre António Vieira [que responde]:

"Ministros da República, da Justiça, da Guerra, do Estado, do Mar, da Terra.

Vedes as desatenções do governo, vedes as injustiças, vedes os sonhos, vedes

os descaminhos, vedes os enredos, vedes as dilações, vedes os subornos,

vedes os respeitos, vedes as potências dos grandes, e as vexações dos

pequenos, vedes as lágrimas dos povos, os clamoroso e gemidos de todos? Ou

os vedes ou não os vedes. Se os vedes, como não os remediais? E se não os

remediais, como os vedes? Estais cegos."

 

Que é que acha?

O que o Padre António Vieira escreveu em 1669 o que podia ser escrito hoje.

Esta é a nossa sina?

Se isto nos acontecer mais vezes, pode ser que a gente, quando vier para a

rua traga o papel e mude.

 

Porque é que o seu discurso está muito mais esquerdista do que eu

imaginaria?

Porque você tem uma imaginação pequena. Vamos lá ver. Nasci numa família

muito pobre. Sei muito bem como é que vivem os pobres.

Descrevi isso num livro de memórias que publiquei. Éramos felizes -

engraçado. Havia uma solidariedade. O que fiz [politicamente] não obedece a

esquerda ou a direita. Obedece à escala de valores que aprendi em criança.

Uso muitas vezes a expressão: os valores são o eixo da roda. A roda corre

todas as paisagens. O eixo acompanha a roda, mas não anda. Quando fui

presidente do CDS, disse: "Este partido tem que assumir a obrigação em

relação aos pobres". Parece-lhe muito de direita?

por: Anabela Mota Ribeiro

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