ESTAMOS ESMAGADOS – Entrevista a
Adriano Moreira
"A culpa morre
solteira" - expressão sua.
Usei-a no
Parlamento. É uma prática muito verificável em Portugal,
designadamente
na crise que estamos a atravessar. Você ainda não viu que
alguém
assumisse a responsabilidade pelas circunstâncias a que chegámos.
Esse é um traço
constante, observável em diferentes momentos históricos da
vida portuguesa. De
onde é que acha que vem esta característica?
Em Portugal
tudo fica no ar, e raramente há consequências e um sentimento de
justiça que o
acompanha.
Acho que devia
ter nascido mais cedo e ter feito essa pergunta ao Agostinho
da Silva.
[riso] Era capaz de lhe dar uma resposta satisfatória. Há, em todo
o caso, uma
circunstância de que Portugal é vítima neste momento.
Normalmente,
quando examinamos a vida de um país, há três forças que é
necessário
avaliar. Uma é a sociedade civil, que neste momento faz
manifestações
completamente apartidárias, o que é preciso ver com cuidado.
São expressões
que dizem respeito a sentimentos que unem a população, por
razões de
queixa fundamentais.
Está a pensar na
manifestação de 15 de Setembro de 2013?
Exactamente.
Depois há outra força: o Governo. E finalmente a terceira
força: a
conjuntura internacional que influencia qualquer país, e cada vez
mais face ao
globalismo. Uma ordem internacional implica que pelo menos
estes três
factores tenham uma harmonia de funcionamento.
Essa harmonia
não existe. Com frequência, aconteceu em Portugal a desarmonia
entre o Governo
e a população, a desarmonia do país com a conjuntura
internacional.
Portugal sofreu nos últimos tempos uma evolução extremamente
alarmante. Na
História portuguesa, o país precisou sempre de um apoio
externo.
Sempre?
O Afonso
Henriques pediu apoio à Santa Sé. A Segunda Dinastia pediu a
aliança inglesa
e pagou caríssimo por ela. No fim do império euro-mundista o
único apoio que
restou foi a União Europeia. Esta evolução mostra que o país
(na ligação com
o mundo) é muitas vezes exógeno. Quer dizer: sofre as
consequências
de causas em que não participou. Um exemplo: a Guerra de
14/18. Portugal
participou nas causas? Não. As consequências, quer em
Moçambique,
quer em Angola, quer na Flandres [foram enormes].
Começou a ser
evidente que o país tinha evoluído para um "estado exíguo".
(Escrevi um
livro com esse título há anos, dizendo que a relação entre os
recursos do
país e os objectivos do país é
deficitária.)
Várias pessoas com responsabilidade na vida pública avisaram
que este
declínio estava em marcha. Quando essa equação
(recursos-objectivos)
chegou à situação de desastre em que nos encontramos,
o país ficou em
regime de protectorado.
Um regime sobretudo
imposto pela situação financeira?
Sim. Os países
têm uma espécie de hierarquia internacional - é por isso que
o Conselho de
Segurança tem as superpotências. Para terem essa hegemonia
precisam de ter
um poder que abrange o poder militar, estratégico e
financeiro.
Quando esses poderes começam a afastar-se, a hierarquia começa a
diminuir. Os
Estados Unidos estão a ser atingidos por isso. Portugal
(últimas
notícias sobre as restrições nas forças
armadas) mostra
que nessa relação (poder militar-poder financeiro) a nossa
debilidade é
extrema. É isso que justifica a situação de protectorado em que
o país se
encontra. As outras debilidades evidentemente atingem o país de um
modo mais
previsível.
Soluções?
Remédios? Em
primeiro lugar é preciso restaurar um valor importante: o da
confiança. A
confiança entre a sociedade civil, Estado e conjuntura
internacional
está profundamente atingido. Parece-me que tem havido uma
certa
dificuldade, da parte do Governo, em compreender que há uma diferença
entre a
legitimidade eleitoral, que justifica a tomada de poder, e a
legitimidade do
exercício [de poder], que começa a ser avaliada no dia
seguinte [à
tomada de posse]. Esta legitimidade para a execução não é uma
coisa para
entretenimento das estatísticas de popularidade.
Está a dizer que
tem de haver uma correspondência com aquilo que foi o
programa eleitoral.
E com a
autoridade que foi conferida. Não é só em Portugal que esse valor
está em crise.
O novo-riquismo que orientou a gestão europeia, e que levou a
Europa a esta
situação, já se traduziu no seguinte: a fronteira da pobreza,
que ainda no
século passado os relatórios da ONU situavam a sul do Sahara,
ultrapassou o
norte do Mediterrâneo.
Portugal está
na área de pobreza. Como está a Espanha, a Grécia, a Itália; a
França já
começa a dar sinais disso.
Os países
mediterrânicos são os que mais têm sentido esse espectro de
pobreza, são os que
estão mais vulneráveis à crise, Porquê?
A hierarquia de
capacidades, não apenas financeiras, mas científicas,
técnicas, a
eficácia de governo e de iniciativa económica - tudo isso faz
que sejam
ressuscitadas fracturas europeias. Não é de hoje a opinião que a
senhora Merkel
tem sobre o sul. Se bem me recordo, há um texto do Guizot
[primeiro-ministro
francês em 1847] que quase emprega as mesmas palavras
para o dizer. O
que considero errado é considerar que esta crise é uma crise
puramente
europeia. Se a comunidade europeia deixar aprofundar as quebras de
solidariedade
que já se verificam, a Europa arrisca-se a não ter voz no
mundo. A crise
é ocidental. E o ocidente todo que está num período de
decadência.
Isso deve-se,
sobretudo, à emergência da China, dos BRlC?
Há uns que
perdem capacidades e outros que a adquirem. Não necessariamente
com culpas. A
Alemanha, que foi responsável pelas duas guerras mundiais que
destruíram
muitas das capacidades europeias, teve, entre outras coisas, a
benesse de
estar dispensada de despesas militares durante anos. E todos
colaboraram,
incluindo os povos do sul, na defesa do Muro para impedir que a
República
Federal fosse atingida pela [força política] a que o Leste estava
submetido. Nos
cemitérios da Normandia, as sepulturas são de soldados
americanos. Não
são de soldados alemães. Portanto, estas solidariedades, a
Alemanha
teve-as.
Como teve quando se
tratou da reunificação das duas Alemanhas, após a queda
do Muro.
Exactamente.
Mas se a nossa crise é uma crise global, quem é que já convocou
o Conselho
Económico e Social das Nações Unidas? Ninguém.
Quem é que deveria
tê-lo feito?
Qualquer membro
interessado.
Na Europa existe
uma subjugação à Alemanha? A orientação da chanceler
Merkel é
grandemente responsável pelo destino actual da Europa?
Ela -
[Alemanha] -, a responsabilidade, é evidente que a tem. O que é
discutível é
que a percepção que tem da evolução da Europa coincida com o
projecto dos
fundadores. Atribuo aos fundadores da União Europeia uma
espécie de
[estatuto de] santidade. Esses homens enfrentaram a guerra, a
destruição dos
seus países, transformaram o sofrimento em sabedoria, e
disseram:
"Vamos criar condições para isto nunca mais acontecer".
Schuman e
Adenauer, sobretudo esses tiveram esse espírito. Não podemos
esquecer Jean
Monet. Nas memórias, escreve que, se fosse hoje (quando estava
a escrever),
teria começado, não pelo comércio, mas pela cultura. Porque a
crise de
valores era extraordinária. Essa crise é que afecta as
solidariedades,
e faz que, mesmo num ponto de vista internacional, a
governação ande
entregue a órgãos que nenhum tratado criou - caso do G-20 -
ou a órgãos que
parecem transformar as Nações Unidas num templo de orações a
um deus
desconhecido.
A ONU está
destituída de poderes e de importância?
Acho que a ONU
está numa crise enorme. Precisa de uma remodelação. A começar
pelo Conselho
de Segurança que já não corresponde, de maneira nenhuma, às
condições em
que vivemos. As potências, qualificadas de superpotências, com
direito de
veto, também têm a sua crise - incluindo os Estados Unidos. Mas
para a Europa é
importante saber porque é que a França e a Inglaterra têm
direito de
veto. Que poder é que [estes países] têm em relação ao mundo? Uma
das reformas
que seria útil fazer seria pôr no Conselho de Segurança países
que, pela sua
dimensão, são efectivamente necessários lá, e regionalismos.
Era a Europa
que devia estar no Conselho de Segurança e não a França e a
Inglaterra.
Há cerca de um
ano assinalaram-se os 5O anos do Tratado Franco-Alemão.
É
extraordinário pensar como este "longínquo" projecto europeu se
esgotou.
Na sua génese,
estava uma ideia de solidariedade e de desenvolvimento
harmonioso que
promovesse o equilíbrio entre as diferentes partes da Europa.
Acha inevitável que
se faça uma refundação de toda a Europa? Esse projecto
assinado há 50 anos
pode ainda ser afinado e recuperado?
Na base de
qualquer projecto destes tem de estar um princípio. O princípio
da unidade
europeia é muito antigo. Continuo a ter admiração pelo conde
Coudenhove-Kalergi,
que parecia ter nascido para o internacionalismo. Todos
os grandes
líderes europeus depois da Guerra estiveram nos congressos que
promoveu.
(Ainda hoje existe uma fundação Coudenhove-Kalergi a que pertenço;
já lá não vou).
Esse homem falava na federação europeia. E claro que a
palavra
"federação" tem muitos sentidos, e isso não significava que ele
tivesse o
modelo final.
Significava que
tinha de se caminhar, como sempre entenderam os projectistas
da paz (é
preciso sempre falar do Kant). Tinha que haver uma gestão
solidária,
comum, da Europa, que está mais ligada por valores do que por
etnias, pela
língua, pela cultura, que são variadas mas que têm um tronco
comum. Não
temos dúvidas quando dizemos que somos europeus.
Essa pertença é
ainda herdeira dos valores da Revolução Francesa? É a
famosa trilogia
liberdade, igualdade, fraternidade que nos guia e que define o
tronco comum?
Não é só isso.
Esses valores são um produto da evolução do espírito europeu.
"Todas as
pessoas nascem com igual direito à felicidade", mas os índios não,
os escravos
não, os trabalhadores não, as mulheres não... Foi preciso uma
grande luta
[para efectivar estas conquistas].
Mas sempre a
partir do tal paradigma. Esse conjunto de valores é que dá
identidade à
Europa.
A Europa que
teve a ambição de europeizar o mundo... - daí o império
euro-mundista
que morreu o ano passado.
Essa
circunstância tem uma consequência importante: a redefinição (a ideia
de refundação é
muito ambiciosa) desses valores. O principal deles é a
soberania. E o
direito a certas prestações que o Estado deve fornecer ("le
droit aux
prestations", como dizem os franceses) - o Estado Social. Há uma
coisa curiosa
na vida [das nações] (na vida das pessoas também): mantêm a
convicção do
poder quando já não o têm.
Ou seja,
funcionando Portugal num regime de protectorado, não temos o
mesmo poder nem a
mesma soberania.
Não, não temos.
Nem temos o que está previsto no Tratado Europeu.
Fomos vítimas
do facto de sermos um estado exógeno. Também fomos vítimas de
mau governo,
[dito em tom irónico] Sem culpas, sem culpas... Mas queria
dizer-lhe
alguma coisa de esperança.
E voltamos à
palavra antiga que usou: remédios. Há remédios?
[riso] Acho que
há. Em primeiro lugar, olhar para o país na situação actual
e ver quais são
os factores da redefinição da soberania de que precisamos.
Não é só a
segurança que diz respeito às forças armadas e à segurança
interna. Há um
elemento da soberania que é fundamental: o ensino e a
investigação.
Uma das razões da mudança de centros (entre os países
emergentes e os
que estão a descer) é que talvez tenha sido esquecido que
não há
fronteiras para a circulação do saber e do saber fazer. Hoje, a
Alemanha parece
que tem um bom mercado para os seus excelentes automóveis na
China. Não me
admira que daqui a algum tempo seja a Alemanha a comprar os
automóveis à
China. Um país que quer manter-se na competição global precisa
de um ensino e
de uma investigação que lhe permitam utilizar o saber e o
saber fazer.
Em Portugal, era
preciso que se continuasse a investir na investigação
científica, na qual
nos temos destacado nos últimos anos?
Sim. A minha
vida tem sido quase toda na universidade. O que ouvi
recentemente
foi um conselho, [um apelo à] emigração. Há cursos de tal
qualidade
(sobretudo na área da Economia e da Gestão) que se orgulham que os
seus
diplomados, mestres e doutores emigrem e sejam muito bem recebidos lá
fora. Eu não me
sinto feliz que vão trabalhar por conta de outrem, para
outro país.
Queria era que tivéssemos condições para que aqui ficassem, e
fizessem do
país um país capaz de competir.
Esta vaga de
emigração que agora temos. É de alta qualidade.
Nada tem que
ver com a vaga dos anos 50 e 60, essencialmente constituída por
força braçal e
iletrada.
É uma força
altamente qualificada. Se os melhores se vão embora... As
contribuições
de jovens cientistas, em especial da Universidade do Minho e
da Universidade
de Aveiro, sim, ajudam o país a recuperar uma posição no
mundo
concorrencial em que estamos.
E ajudam a
recuperar confiança. Alento.
Sim. Por isso
sempre sustentei que ensino e investigação é um problema de
soberania. As
propinas são taxas do Direito Financeiro. Não são o preço do
serviço que o
professor presta ao aluno. Diz respeito ao interesse do país
que isso se
faça. Temos outras janelas de liberdade para o país. A meu ver,
há duas
principais. Uma é a CPLP.
A língua portuguesa
como património, como motor, como tesouro?
Não é só a
língua E a maneira portuguesa de estar no mundo. É mais do que a
língua. Da
língua, o que digo é que a língua não é nossa - ela também é
nossa. Mas os
valores que a língua transporta, porque a língua não é neutra,
esses valores
não são iguais em todos os países onde se fala português. A
maneira
portuguesa de estar no mundo, o Brasil soma valores indígenas,
africanos,
alemães, japoneses, italianos...
A CPLP é um
caso único. A França que teve uma importância tão grande no
norte de
África, e naquele bocadinho do Canadá, não tem uma CPLP.
A Espanha
também não. E
[a constituição da CPLP ainda é mais significativa] depois de
uma guerra de
tantos anos [com os países que a constituem]... O que
significa que o
conflito era com a forma de governo, não era com o povo
português.
Angola, Brasil e
Moçambique estão a crescer, mas todos têm grandes
assimetrias entre
ricos e pobres.
É. Acho que a
CPLP precisa de grande atenção. A universidade deu por
isso: há uma
associação das universidades de língua portuguesa. A última vez
que reuniu foi
em Bragança, 400 pessoas.
Outro problema:
o mar. A terra que não se pisa e a água que não se navega
não são nossas.
Lembro-me sempre da reunião de D. João I com os filhos.
Como foi essa
reunião?
Tanto quanto a
minha memória me diz, das leituras de há tantos anos,
juntaram-se
para discutir o que é que haviam de fazer para se expandir.
Havia quem
entendesse que a expansão devia ser para a Andaluzia. Os rapazes
[os infantes]
disseram: "Não. Tivemos uma guerra com Castela que durou anos,
agora estamos
em paz. Castela considera que a sua zona de expansão natural é
a Andaluzia. Se
formos para aí, vamos ter guerra outra vez". Então para
onde?
"Para o mar."
Discutiram. Os
recursos, o saber, as armas, os navios, tudo. Definiram um
conceito
estratégico nacional.
Portugal tem
uma posição estratégica privilegiada, mas não um Conceito
estratégico
nacional. Mesmo agora está a ser discutido um documento sobre
defesa e
segurança Fui ouvido. A minha primeira pergunta foi: defesa e
segurança de
quê? Falta o conceito estratégico.
Ser uma
plataforma continental é outra janela de liberdade. Se nos for
reconhecida
pelas Nações Unidas, será a maior plataforma continental do
mundo. O
reconhecimento estava previsto acontecer em 2013. Agora já se fala
em 2015. Não
gosto disto. Esta plataforma é uma riqueza incomensurável. Vi
uma notícia
sobre a intenção da União Europeia de redefinir o mar europeu.
Lembrei-me de
1890. Nós também tínhamos a ideia de Angola à Contra-Costa e
depois veio o
Ultimato [Inglês]. Se definem o mar europeu antes de definir
que a
plataforma é nossa, provavelmente todos os países da União Europeia
vão
considerar-se co-proprietários. Devíamos apressar isto.
E meios, e força, e
dinheiro para apressar isto?
O financiamento
é um problema, naturalmente. Aí precisa de uma esplêndida
diplomacia. A
nossa é boa. E equivalente à do Vaticano!, com a diferença de
a do Vaticano
ser ajudada pelo Espírito Santo, [riso]
Está a pensar
especificamente no actual ministro dos Negócios Estrangeiros?
Também no nosso
ministro, mas a nossa diplomacia é muitíssimo boa. E muitas
vezes trabalha
sem instruções. É o amor à Pátria, é o que [é considerado] o
interesse
nacional, e lá vão. Acho que isto faz parte do futuro de Portugal.
Usou a
expressão "janela de liberdade", e não "janela de
oportunidade", que
é uma expressão
que agora se usa muito. Não é a mesma coisa.
Não, não é. As
pessoas acham que, porque pertencemos à União Europeia, tudo
tem de ser
feito de acordo com a UE. Eu digo: "Não, não. Há um espaço de
liberdade. A
França: aquela gendarmerie que manda para África, para explicar
o que é a
democracia, não tem nada a ver com a UE. Tem a sua liberdade".
Temos de ter a
nossa. Temos de cumprir com os tratados da União, mas a União
não nos impede
que tenhamos um espaço de liberdade. A CPLP é a nossa
liberdade. Por
isso prefiro a palavra "liberdade". Essa liberdade já vem
ligada a uma
espécie de posse. A oportunidade é outra coisa. E preciso [para
essa
oportunidade] ainda um outro esforço.
Este Governo que
temos vai para dois anos está desapontado? Têm sido crítico
nas intervenções
públicas que tem feito. Esperava mais?
Devo dizer que
desapontado estou com a Europa. Depois estou desapontado com
a solidariedade
atlântica. (Os efeitos colaterais do abandono dos Açores são
enormes do
ponto de vista económico para o
arquipélago.)
Neste Governo, há uma coisa que me incomoda: o objectivo
fundamental é o
Orçamento. Uso a expressão "ministro do Orçamento".
Ministro ou
primeiro-ministro?
Ministro do
Orçamento, e não ministro das Finanças ou primeiro-ministro. O
ministro mais
importante é o do Orçamento.
Portugal não está
refém do Orçamento, ou seja, do cumprimento do
memorando da
Troika?
O estar preso
pelas obrigações financeiras internacionais é evidente que
exige que essas
obrigações sejam assumidas. É isso que restaura a confiança
e que restaura
a igualdade internacional do país (e que elimina o
protectorado).
Mas se fosse um caso isolado, a nossa debilidade seria maior.
Não é o caso. O
caso é que a fronteira da pobreza atingiu a Europa, como
disse. A
solidariedade do espaço, que é um princípio que está em vigor,
implica que a
situação real dos países tenha de ser avaliada. Não é com
fórmulas
aritméticas que se governam os países. E não é um favor que fazem.
É uma dedução
do princípio da solidariedade. Já viu algum médico tratar
todos os
doentes com o mesmo remédio? Nunca viu. O remédio não é igual para
todas as
situações. A situação de cada país precisa concretamente de ser
avaliada.
Portugal não está na mesma posição que está a Inglaterra ou a
França Os
países com que nos comparam não são esses. Portugal quis
comparar-se com
a Grécia, para dizer que não é a Grécia. Que é o bom aluno,
cumpridor.
Mas estão todos
em pé de igualdade com a Alemanha e a França no que respeita
a direitos e
obrigações dentro da UE. Se há o princípio de ajuda mútua na
UE, tão
obrigada [a isso] está a Alemanha como estamos nós. Quando chegam as
dificuldades
queremos ser tratados como os outros.
Voltemos à
apreciação a este Governo. Falta-lhe conceito estratégico, dizia.
Falta conceito
estratégico. E é evidente que a gestão neoliberal do Governo
está a destruir
o Estado Social. O Estado Social, uma conquista do ocidente,
é uma
convergência do socialismo democrático, da doutrina social da Igreja e
até do
manifesto comunista de Karl Marx. (As palavras têm uma força
tremenda. Às
vezes falo do poder da palavra contra a palavra do poder.) Na
Constituição
portuguesa o Estado Social é uma principiologia. Não é uma
regra
imediatamente imperativa. O que diz é: na medida da possibilidade. E
estranho que se
transforme uma principiologia numa rejeição. Não se devem
rejeitar
princípios, em especial princípios que levaram séculos a ser
desenvolvidos e
a ser incorporados na cultura da população. Nesse aspecto,
tenho uma certa
apreensão e falta de confiança no entendimento da real
situação
portuguesa. E não posso considerar que o Orçamento seja o elemento
fundamental. Os
que estão já numa situação de pobreza, juntos, têm força
suficiente para
dar um murro na mesa [e exigir] que os princípios da UE
sejam
respeitados.
Estamos na
iminência de uma revolução em Portugal, justamente porque esses
que apontou, juntos,
já são capazes de dar um murro na mesa?
Tenho admirado
a maneira ordeira e não-partidária com que as reacções se têm
verificado. Mas
penso que a população portuguesa atingiu o limite da pressão
fiscal. Quando
vemos os suicídios, as mães que se atiram da janela com os
filhos para não
os deixar cá, quando as coisas chegam a estes extremos,
lembro-me
disto: a fome não é um dever constitucional. Sabido isto, a
inquietação
aumenta dia-a-dia Não preciso de dizer mais palavras.
Isto que estamos a
viver tem algum paralelo com alguma coisa que tenha
vivido nos seus 90
anos?
Não. É a
situação mais deprimente que vivi na minha longa vida. As condições
de vida eram
diferentes. E mais difícil [agora] perder [determinadas]
condições de
vida As condições não eram as desejáveis, mas as pessoas não
sofriam tanto.
Porque havia a... "vida habitual".
Embora a culpa
morra solteira, a sociedade civil não é a que tem mais
responsabilidades.
Estamos esmagados. Pagamos as dívidas que o novo-riquismo
do Estado
desenvolveu (não tenho de fazer distinção entre partidos).Temos de
pagar as
dívidas das câmaras, dos institutos que o Estado multiplicou, e o
que sobeja, e
que não pode ser o último dos interesses, é a vida de cada
ser humano. A
dignidade tem de ser igual. A Europa sabe isto.
É por cegueira que
os políticos não aterram nisso que diz?
Vou dar-lhe um
texto do Padre António Vieira [que responde]:
"Ministros
da República, da Justiça, da Guerra, do Estado, do Mar, da Terra.
Vedes as
desatenções do governo, vedes as injustiças, vedes os sonhos, vedes
os descaminhos,
vedes os enredos, vedes as dilações, vedes os subornos,
vedes os
respeitos, vedes as potências dos grandes, e as vexações dos
pequenos, vedes
as lágrimas dos povos, os clamoroso e gemidos de todos? Ou
os vedes ou não
os vedes. Se os vedes, como não os remediais? E se não os
remediais, como
os vedes? Estais cegos."
Que é que acha?
O que o Padre
António Vieira escreveu em 1669 o que podia ser escrito hoje.
Esta é a nossa
sina?
Se isto nos
acontecer mais vezes, pode ser que a gente, quando vier para a
rua traga o
papel e mude.
Porque é que o seu
discurso está muito mais esquerdista do que eu
imaginaria?
Porque você tem
uma imaginação pequena. Vamos lá ver. Nasci numa família
muito pobre.
Sei muito bem como é que vivem os pobres.
Descrevi isso
num livro de memórias que publiquei. Éramos felizes -
engraçado.
Havia uma solidariedade. O que fiz [politicamente] não obedece a
esquerda ou a
direita. Obedece à escala de valores que aprendi em criança.
Uso muitas
vezes a expressão: os valores são o eixo da roda. A roda corre
todas as
paisagens. O eixo acompanha a roda, mas não anda. Quando fui
presidente do
CDS, disse: "Este partido tem que assumir a obrigação em
relação aos
pobres". Parece-lhe muito de direita?
por: Anabela Mota Ribeiro
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