Concorde-se ou não, não deixa de ser uma reflexão com interesse aqui para a Aldeia, que, como sabem, se queda no tal de "interior"...
Está aberto o debate, o que quer dizer, a discussão, aqui na praça do povoado (ou, porque está frio e um naboeiro do c******, será melhor ali dentro no café do Manel):
http://www.jornaleconomico.sapo.pt/noticias/sujeito-interior-99849
Sujeito Interior
Num tempo de precariedade e mobilidade que causam mal-estar social, o
Interior pode proporcionar maiores oportunidades às pessoas de se enraizarem e
de terem um lugar.
Na semana passada, o ministro-adjunto Eduardo Cabrita,
acompanhado pelo ministro do Ambiente João Pedro Matos Fernandes, apresentou na
Universidade da Beira Interior o Programa Nacional para a Coesão Territorial,
no qual se dá relevo à sua maior dificuldade: a progressiva desactivação e
despovoamento do Interior. O Programa é composto por um conjunto de 164
medidas, cuja implementação será monitorada pelo Conselho de Ministros com uma
periodicidade semestral. Este importante documento foi preparado pela Unidade
de Missão para a Valorização do Interior, coordenada por Helena Freitas. O seu
último capítulo apresenta um título ambicioso: “Uma agenda para o Interior”. Ao
lê-lo somos capazes de acreditar que o Interior estará para o Governo Costa
como a paixão da educação esteve para o governo Guterres. O que faz falta,
sobretudo no que tem de ambição. Este é o pretexto para nove notas que gostaria
de pôr à consideração.
1. O Interior de que se fala quando se fala politicamente
do Interior não é uma categoria genuinamente territorial. Se assim fosse,
Portugal pouco interior teria, pois é todo ele uma faixa que nunca dista muito
mais de duas horas da beira-mar. O “jardim à beira-mar plantado” de que falava
Tomás Ribeiro referia-se a Portugal inteiro, com costa e “interior”. O Interior
não é, contudo, uma ilusão ou um mito. É uma realidade bem concreta e sentida
por quem nele vive. Mas não tanto de natureza territorial quanto de carácter
social, estabelecida por meios económicos e conservada por meios culturais.
2. Na verdade, acontece com a desigualdade territorial o
mesmo processo de reificação que, no passado, levou pessoas a justificar outras
formas de desigualdade, como a de género, ou até mesmo a racial. A desigualdade
resultaria de disposições naturais que ultrapassariam o âmbito da escolha
política e seria, portanto, uma fatalidade. Mas tal como a diferença de género
não é efectivamente a causa da desigualdade, também a diferença territorial não
é a causa da desigualdade territorial. A reificação é um processo de
naturalização que visa tornar-nos mais tolerantes à desigualdade que, de outro
modo, não aceitaríamos num quadro democrático que se presume regulado por
princípios de justiça social.
3. Este artifício da polarização territorial
Interior/Litoral é indissociável de uma outra operação de reificação: o
ocultamento da variedade dos territórios postos sob o rótulo “Interior”. Um
Interior homogéneo exacerba a diferença para com um Litoral igualmente
representado como uma entidade homogénea. Se a primeira reificação tem de ser
desmistificada na maneira como naturaliza uma desigualdade evitável, a segunda
tem de ser invertida através de uma prática de diferenciação de “Interiores”.
Não apenas para assim relativizar o absolutismo de que o território nacional
tem por divisão primordial a divisão Interior/Litoral, mas, mais importante,
para não desperdiçar o principal recurso para uma capacitação do Interior:
precisamente, a sua variedade. Pelo que é preciso concordar com a declaração de
Helena Freitas na apresentação do Programa: “O grande problema [de outros
programas e das políticas públicas] é que olham para o interior como um todo”.
4. Mas há outros grandes problemas no design de políticas
públicas com que, em passado bem recente, foi enfrentada a questão do
“Interior”. Um prende-se com a maneira como se encaram as políticas de
discriminação positiva com vista à coesão territorial. Ou estas foram
prontamente descartadas, como sucedeu, por exemplo, com a tristemente célebre
evocação de um princípio do utilizador-pagador igual para todos, que serviu
para justificar a desastrosa introdução de portagens nas auto-estradas do
interior do país. Ou, não sendo descartadas, pelo menos foram desqualificadas
ao serem interpretadas como políticas assistencialistas, quase sempre eivadas
de paternalismo centralista, que no lugar de corrigir antes confirmam a
desigualdade territorial e das respectivas populações, umas assumidas como
genuínos sujeitos e as outras apenas como pacientes de assistência. Ambos os
casos — o do igualismo e o do assistencialismo — falham na compreensão de que a
discriminação positiva é um instrumento central, e não acessório, da governação.
É dispensá-lo que torna o território um problema, deixando um tanto
absurdamente o país desconfortável com o espaço que ocupa no mundo. As
políticas de incentivos fiscais podem desempenhar aqui um importante papel. É
disso exemplo a redução da taxa de IRC para micro, pequenas e médias empresas a
exercer no Interior prevista no OE de 2017.
5. Outro problema no enfrentamento da desigualdade
territorial está numa espécie de romantismo da ruralidade, do valor histórico,
da conservação, que sendo apreciável e tendo no turismo algumas oportunidades
não deixa, ainda assim, de contribuir para musealizar territórios inteiros,
deixando-os fora do tempo actual, concentrado noutros lugares. Na verdade, a
musealização do Interior, se tomada como uma tendência de primeira ordem,
apenas serve para confirmar a sua inactivação, não raro com maior
condicionamento das populações residentes, que se vêem a si e às suas vidas
objectivadas num papel turístico.
6. Ainda outro problema com políticas passadas é a
designada “racionalização da prestação de serviços públicos”. Se limiares
mínimos de qualidade não podem ser postos em causa na prestação de serviços
públicos, muito especialmente os de saúde, o critério da eficiência económica
não pode resultar num desaparecimento quase literal do Estado de grandes
porções do território. Mesmo que o recurso a serviços móveis ou virtuais
resolva muito, o Estado não pode abandonar o território ou “estar” por lá
apenas virtualmente.
7. Por fim, um último problema tem que ver com sujeitos
políticos. Há uma incapacidade de ultrapassar regionalismos e capelinhas dentro
do Interior, quase sempre atravessados por jogos de influências
partidárias, que só embaraçam o desafio mais importante que é o de ter escala,
ligando distritos e NUTS do Interior com ganhos de capacidade, racionalidade e
inclusão. Contrariamente ao que pode parecer uma evidência, estes regionalismos
resolviam-se, pelo menos parcialmente, com a regionalização política. Por
exemplo, enquanto os presidentes das comunidades intermunicipais forem
presidentes de câmaras, como se pode esperar que tenham uma prioridade
diferente da que os elegeu como presidentes dos seus municípios? Entre a escala
do poder central e a escala do poder municipal há um vácuo que deixa a escala
de interdependências e sinergias regionais de que o país precisa sem escala
democrática apropriada.
8. À falta que a regionalização faz soma-se a falta de
representação dos territórios despovoados na Assembleia da República. O
Litoral, que corresponde a apenas 11% do território, elege mais de metade dos
parlamentares. E os oito círculos eleitorais do Interior, cuja área cobre 56,3%
do território nacional – Beja, Bragança, Castelo Branco, Évora, Guarda,
Portalegre, Vila Real e Viseu – não elegem mais do que 33 deputados, ou seja
14,35% do parlamento. Além de escassa, esta representação parlamentar do
Interior está comprimida aos grandes partidos. Razões para reflectir
sobre a necessidade de uma reforma eleitoral e ponderar unir círculos
eleitorais aumentando o número e a diversidade de deputados que representam o
interior.
9. Apesar de todas as reificações, o “Interior” que
preenche o imaginário de muitos, sobretudo dos que o habitam, tem também uma
semântica positiva incrustrada e que tem de ser pensada para lá dos seus
limites territoriais. Tal como os problemas de interioridade não são
exclusivamente do Interior, também as soluções para a interioridade podem ser
encontradas, sem exclusivismos, numa semântica do Interior. Uma semântica que
proponha o Interior não como uma fatalidade mas como uma visão capaz de
responder aos seus problemas em primeiro lugar, mas igualmente aos problemas
nacionais e até aos problemas globais. Num tempo de precariedade e mobilidade
que causam mal-estar social, o Interior pode proporcionar maiores oportunidades
às pessoas de se enraizarem e de terem um lugar. E a pergunta a pôr é se não é
essa uma boa maneira de conceber o desenvolvimento, seja qual for a escala em
que o pensemos? Em suma, o Interior só deixará de ser o paciente se dele
fizermos um pleno sujeito, político e com visão.
O autor escreve segundo a antiga ortografia [este é cá dos nossos!! - que s'alixe lá o (des)Acordo "Hortográfico"]
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