Ainda sobre o tal de
Ulrich, para acabar o assunto (por enquanto, e até nova grulhidela do dito),
aqui vos deixamos - no pelourinho, que era onde antigamente se afixavam
editais, além de se amarrarem os prevaricadores - este magnífico texto de Alice
Brito (que não conhecemos, pois a Aldeia é grande, mas que tem toda a razão).
E, curiosamente, as comparações com Auschwitz também já por cá andaram (cá pela
Aldeia), o que significa que mais pessoas estão a chegar à mesma conclusão:
A RAIVA DE TODOS NÓS CONTRA OS CÍNICOS DESTE PAÍS
"Sei que a raiva não é boa conselheira.
Paciência. Aí vai.
Havia dantes no coração das cidades e das vilas umas colunas de pedra que
tinham o nome de picotas ou pelourinhos. Aí eram expostos os sentenciados que a
seguir eram punidos com vergastadas proporcionais à gravidade do seu crime.
Essa exposição tinha também por fim o escárnio popular.
Era aí que eu te punha, meu glutão.
Atadinho com umas cordas para que não fugisses. Não te dava vergastadas. Vá lá,
uns caldos de vez em quando. Mas exibia-te para que fosses visto pelas pessoas
que ficaram sem casa e a entregaram ao teu banco. Terias de suportar o seu
olhar, sendo que o chicote dos olhos é bem mais possante que a vergasta.
Terias, pois, de suportar o olhar daqueles a quem prometeste o paraíso a
prestações e a quem depois serviste o inferno a pronto pagamento.
Daqueles que hoje vivem na rua.
Daqueles que, para não viverem na rua, vivem hoje aboletados em casa dos pais,
dos avós, dos irmãos, assim a eito, atravancados nos móveis que deixaram vazias
as casas que o teu banco, com a sofreguidão e a gulodice de todos os bancos,
lhes papou sem um pingo de remorso.
Dizes com a maior lata que vivemos acima das nossas possibilidades. Mas não
falas dos juros que cobraste. Não dizes, nessas ladainhas que andas sempre a
vomitar, que quando não se pagava uma prestação, os juros do incumprimento
inchavam de gordos, e era nesse inchaço que começava a desenhar-se a via-sacra
do incumprimento definitivo.
Olha, meu estupor, sabes o que acontece às casas que as pessoas te entregam?
Sabes, pois… São vendidas por tuta e meia, o que quer dizer que na maior parte
dos casos, o pessoal apesar de te ter dado a casa fica também com a dívida. Não
vale a pena falar-te do sofrimento, da vergonha, do vexame que integra a
penhora de uma casa, porque tu não tens alma, banqueiro que és.
Tal como não vale a pena referir-te que os teus lucros vêm de crimes
sucessivos. Furtos. Roubos. Gamanços. Comissões de manutenção. Juros
moratórios. Juros compensatórios, arredondamentos, spreads, e mais juros de
todas as cores. Cartões de crédito, de débito, telefonemas de financeiras a
oferecerem empréstimos clausulados em letrinhas microscópicas, cobranças
directas feitas por lumpen, vale tudo, meu tratante. Mesmo assim tiveste de ser
resgatado para não ires ao fundo, tal foi a desbunda. E, é claro, quem pagou o
resgate foram aqueles contra quem falas todo o santo dia.
Este país viveu décadas sucessivas a trabalhar para os bancos. Os portugueses
levantavam-se de manhã e ainda de olhos fechados iam bulir, para pagar ao banco
a prestação da casa. Vidas inteiras nisto. A grande aliança entre a banca e a
construção civil tornavam inevitável, aí sim, verdadeiramente inevitável, a
compra de uma casa para morar. Depois os juros aumentavam ou diminuíam conforme
era decidido por criaturas que a gente não conhece. A seguir veio a farra. Os
bancos eram só facilidades. Concediam empréstimos a toda a gente. Um carnaval
completo, obsessivo, até davam prendas, pagavam viagens, ofereciam móveis.
Sabiam bem o que faziam.
Na possante dramaturgia desta crise entram todos, a banca completa e
enlouquecida, sendo que todos são um só. Depois veio a crise. A banca guinchou
e ganiu de desamparo. Lançou-se mais uma vez nos braços do estado que a
abraçou, mimou e a protegeu da queda.
Vens de uma família que se manteve gloriosamente ricalhaça à custa de alianças
com outros da mesma laia. Viveram sempre patrocinados pelo estado, fosse ele
ditadura ou democracia. Na ditadura tinham a pide a amparar-vos. Uma pide
deferente auxiliava-vos no caminho. Depois veio a democracia. Passado o susto
inicial, meu deus, que aflição, o povo na rua, a banca nacionalizada, viraram
democratas convictos. E com razão. O estado, aquela coisa que tu dizes que não
deve intervir na economia, têm-vos dado a mão todos os dias. Todos os dias,
façam vocês o que fizerem.
Por isso falas que nem um bronco, com voz grossa, na ingente necessidade de
cortes nos salários e pensões. Quanto é que tu ganhas, pá?
Peroras infindavelmente sobre a desejável liberalização dos despedimentos.
Discursas sem pejo sobre a crise de que a cambada a que pertences é a principal
responsável.
Como tu, há muitos que falam. Aliás, já ninguém os ouve. Mas tu tinhas que
sobressair. Depois do “ai aguenta, aguenta”, vens agora com aquela dos
sem-abrigo. Se os sem-abrigo sobrevivem, o resto do povo sobreviverá
igualmente.
Também houve sobreviventes em Auschwitz, meu nazi.
É isso que tu queres? Transformar este país num gigantesco campo de
concentração?
Depois, pões a hipótese de também tu poderes vir a ser um sem-abrigo. Dizes
isto no dia em que anuncias 249 milhões de lucros para o teu banco. É o que se
chama um verdadeiro achincalhamento.
Por tudo isto te punha no pelourinho. Só para seres visto pelos milhares que
ficaram sem casa. Sem vergastadas. Só um caldo de vez em quando. Podes dizer-me
que é uma crueldade. Pois é. Por uma vez terás razão. Nada porém que se compare
à infinita crueldade da rapina, da usura que tu defendes e exercitas.
És hoje um dos czares da finança. Vives na maior, cercado pelos sebosos
Rasputines governamentais. Lembra-te do que aconteceu a uns e ao outro."