Aqui fica, do Publico de hoje, 2014.11.19:
Opinião
Por Santana Castilho
19/11/2014 - 01:17
Contrariamente ao discurso das maiorias, nacional e europeia, o nosso
problema não é o excesso de Estado, mas o seu constante e progressivo
aniquilamento.
Em sentido figurado, um lodaçal é um ambiente de vida desregrada, um lugar
aviltante. Literalmente, o vocábulo expressa um lugar onde há muito lodo, um
atoleiro. O escândalo BES, com responsáveis evidentes e nenhum preso, o roubo
legal de milhares de milhões de dólares operado pelo Luxemburgo às economias
dos países europeus e a recente hecatombe que se abateu sobre o Governo e as
cúpulas da administração pública portuguesa mostram que é lá, num lodaçal, que
vivemos.
Estes três escândalos, de tantos que tornam desesperada a vida cívica, têm
uma génese: a desagregação do Estado, com a consequente anulação do seu poder
fiscalizador e regulador sobre o mundo financeiro. Contrariamente ao discurso
das maiorias, nacional e europeia, o nosso problema não é o excesso de Estado,
mas o seu constante e progressivo aniquilamento. O nosso problema consiste em
encontrar meios políticos para devolver ao Estado instrumentos de fiscalização
e regulação que protejam o interesse geral.
O meritório trabalho do International Consortium of Investigative
Journalists expôs uma dimensão magna de um roubo legal, que permitiu a cerca de
340 empresas internacionais, assistidas fiscalmente por uma só, de consultoria
financeira, a PricewaterhouseCoopers, pagarem apenas cerca de 1% de imposto
sobre os lucros. Moralmente nojento, quando pensamos na monstruosa carga fiscal
que, em nome da crise, asfixia os cidadãos. Repugnante, quando esta degradante
evasão fiscal, grosseiramente violadora da lealdade devida entre
Estados-membros da União Europeia, foi conduzida sob a responsabilidade de
Jean-Claude Juncker, que acaba de assumir a presidência da Comissão Europeia.
Vivemos num lodaçal de ataques aos direitos básicos dos cidadãos,
perpetrados por figurões que se dizem, sempre, de bem com a sua consciência de
sociopatas, de quebra constante da confiança no Estado, de desespero crescente
quanto ao futuro. Porque as leis, iníquas e de complexidade impenetrável,
protegem os fortes do mesmo passo que diminuem os apoios sociais e o direito
dos mais débeis.
Responsabilidade moral e política são coisas que os dirigentes não
conhecem. Mas a falta de decoro é-lhes pródiga. Um episódio pouco divulgado
mostra-o com clareza. No dia 11 deste mês, numa audição na Comissão Parlamentar
dos Negócios Estrangeiros e Comunidades, a propósito da eleição de Portugal
para o Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas e respondendo a
considerações que vários deputados fizeram sobre o impacto da crise na vida dos
portugueses, o ministro Rui Machete afirmou que os direitos fundamentais
sociais dependem da economia e podem ser restringidos em função dela. Ou seja, em
matéria de direitos fundamentais contam nada as aquisições civilizacionais, as
convenções internacionais que subscrevemos e a Constituição da República
Portuguesa, porque mandam o PIB e os credores internacionais. Rui Machete disse
que na ONU "Portugal pautará a sua actuação pelo objetivo da defesa da
dignidade da pessoa humana e do carácter individual, universal, indivisível,
inalienável e interdependente de todos os direitos humanos, sejam direitos
civis, culturais, económicos, políticos ou sociais". Rui Machete afirmou
ir defender na ONU os mesmos direitos sociais que, garantiu, podem ser
suspensos cá dentro, penalizando as pessoas em pobreza extrema, os idosos e as
crianças. Forte lógica, sólida moral.
Importa relembrar, a propósito desta (mais uma) infeliz intervenção pública
de Rui Machete, que “os órgãos de soberania não podem, conjunta ou
separadamente, suspender o exercício dos direitos, liberdades e garantias,
salvo em caso de estado de sítio ou de estado de emergência, declarados na
forma prevista na Constituição” (Artigo 19.º, n.º 1, da CRP).
E voltamos ao lodaçal, que explica a abulia generalizada. Novo exemplo:
sorrateiramente, avança a municipalização da Educação, metáfora para consagrar
nova tragédia, qual seja entregar ao arbítrio das câmaras aderentes um domínio
estratégico, que jamais deveria sair da tutela central. Basta reler a história
da I República (a descentralização/municipalização da educação foi definida
pela primeira vez em decreto de 29 de Março de 1911) para perceber que não é de
descentralização municipalista, mas de autonomia, que as escolas e os
professores necessitam e que a substituição do monolitismo vigente por vários
caciquismos não resolverá um só problema e acrescentará muitos mais e graves.
A pequena dimensão do país, a natureza dos compromissos, legais e éticos,
assumidos pelo Estado face a um vastíssimo universo de cidadãos e as economias
de escala que as rotinas informáticas permitem, justificam que a gestão da
Educação permaneça centralizada. Quanto aos aspectos que ganharão, e são
muitos, se aproximarmos a capacidade de decidir ao local onde as coisas
acontecem, não deve o poder ser entregue às câmaras, mas aos professores e às
escolas. Justifica-o a circunstância de estarmos a falar da gestão pedagógica.
Porque quem sabe de pedagogia são os professores.